Severino Francisco
Há algumas semanas, fui ver a abertura da exposição Escolhos e restolhos, de Pedro Alvim, em cartaz na Galeria Parangolé, do Espaço Renato Russo da 508 Sul, e as imagens continuam vivas em minha cabeça. É uma Brasília singular que Pedro nos apresenta. Se Galeno representa a cidade como um jogo de lego com infinitas combinações, Luis Gallina revelou a beleza retorcida das árvores do Cerrado e Wagner Hermuche imprimiu o lirismo elétrico das noites brasilianas, Pedro Alvim apresenta Brasília sob a ótica das ruínas.
Os terrenos baldios, relances do Lago Paranoá sob fiapos da vegetação do Cerrado, os escombros das construções de prédios inacabados, os vestígios dos monumentos em forma de esqueletos abandonados sob uma atmosfera turva, os canteiros de obras, os escolhos e os restolhos são acionados para convidar o espectador a participar de um jogo de velamento e desvelamento. A matéria da pintura de Pedro é trivial, mas a abordagem é poética e nos lança, sutilmente, no território do mistério.
Essa é a graça da exposição. As pinturas podem ser contempladas como fotogramas de um filme ou cenas de uma história em quadrinhos de montagem fragmentária. Mas é bom lembrar que Pedro é professor de história da arte e mistura esse olhar apurado sobre a pintura universal às paisagens prosaicas extraídas do cotidiano brasiliense. O que reponta nas telas é uma Brasília anti-monumental, marginal, na contramão do cartão-postal.
Eu me arriscaria a dizer que a mostra seria uma mistura de poesia marginal e cinema marginal. Pedro rejeita, deliberadamente, qualquer elemento decorativo que distraia a atenção do essencial. Quer que a pintura seja apreciada em primeiro plano da maneira mais pura. A maioria das pinturas não tem moldura ou título. E, para deixar clara a intenção crítica, envolve algumas telas com molduras escandalosamente estropiadas, que parecem ter sido encontradas em alguma casa de demolição. Desfigurada, a moldura produz um efeito cômico surreal.
É como se essas paródias de ornatos dissessem: “Caro espectador, hipócrita como eu, meu semelhante, meu irmão, não me interessam os adereços que estetizam e falseiam a pintura. Quero que você se atenha à essência da pintura, despida de qualquer artifício”. E, de fato, algumas telas ficam no limiar da abstração, o que permite apreciar com mais nitidez o ritmo das pinceladas e a música da cor emanadas da pintura de Alvim.
Em determinado momento, tive a impressão de visitar não uma sala de exposição, mas, sim, o próprio atelier do artista, porque um outro traço da pintura de Pedro é a incompletude, a inconclusão e o inacabamento. Ele revê e revisa sempre essas paisagens brasilianas com o requinte do olhar do professor de história da arte. Pinta e repinta por cima, aperfeiçoando o imperfeito e desprezando a perfeição, como diz Gilberto Gil.
O peso da matéria trivial e bruta pode enganar em uma primeira mirada. No entanto, não se trata apenas de uma visão negativa da cidade. Essa pintura constrói um olhar poético que convida o espectador a contemplar, sob inusitados ângulos, o enigma-Brasília, entre escolhos e restolhos. O elemento sublime é a bela pincelada de Pedro Alvim.

