Severino Francisco
Nicolas Behr é um menino nato, não importa que ele já tenha ultrapassado a curva dos 60. Na década de 1980, quando estreou na poesia marginal, com livrinhos mimeografados, parecia um surfista da piscina de ondas. Hoje, a sua estampa é de um venerável cientista da Academia de Ciência Brasiliana.
Mas é só mirar nos seus olhos para vislumbrar a luz do menino matogrossense travesso e matreiro. É com esse olhar que ele contempla Brasília. Behr se engalfinhou com a maquete do Plano Piloto, de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, em um caso de amor conflituado, que só não parou na delegacia porque se resolveu em poesia: “Bicho, este palácio é a maior cascata”.
Crédito: Antonio Cunha/CB/D.A Press. Brasil. Brasília – DF. Índios tomam banho no espelho d’água do Palácio da Justiça durante protesto contra mudança na lei de demarcação de terras, na Esplanada dos Ministérios.
Na virada da década de 1980, questionei bastante a poesia marginal. Agradava-me muito a abordagem brutalista, a ênfase na vida como ela é, a linguagem crua, mas eu discordava do culto à ignorância.
Mesmo sem ter, ainda, construído uma obra consistente, Behr botou o crachá imaginário de poeta no peito e foi em frente, mas com um fé na poesia capaz de abalar montanhas de obstáculos. É o próprio Behr quem diz: Francisco Alvim alfabetizou a poesia marginal. Da precariedade Behr fez uma força e se tornou o mais representativo poeta de Brasília.
E, agora, para celebrar os 60 anos de Brasília, Behr preparou o livro Rasília (é assim mesmo, revisão), sem o B, para expressar a incompletude da cidade e da poesia. Behr toma emprestada a máquina Polaroid de Oswald de Andrade e registra flashes poéticos, retratos-relâmpago, de figuras célebres ou anônimas de Brasília.
Lembro que, na década de 1980, o jornalista e ator Ary Pararraios, comandante do grupo Esquadrão da Vida, se equilibrava de ponta-cabeça na mesa em que trabalhava na redação do Correio. Behr flagra Párarraios na W3 com agudeza: “Lá vem o palhaço/pela W3/na contramão”.
Mas o interessante é que Behr inaugura uma nova faceta em sua produção. Ele registra flashes poéticos não apenas de cenas cotidianas, mas, também, de estados da alma, como ocorre no poema dedicado a Cássia Eller: “diamante bruto/quanto menos lapidar/mais brilha”
Brasília foi concebida por Lucio Costa a partir do gesto de quem toma posse do território, fincando uma cruz na terra. Todavia, o desenho do Plano Piloto ficou parecendo um avião. Pediram esclarecimento ao doutor Lucio e, bem-humorado, ele disse que era uma borboleta. É com essa história que Behr brinca no poema dedicado a Lucio Costa. Behr, que tanto criticou os criadores de Brasília, se rende ao talento do urbanista e faz a epifania: “a razão pensa/e surge o gênio/de dentro da borboleta”.
Mas o fato é que achei muito bons quase todos os poemas de Razília. O humor, que, algumas vezes, se diluía na piada, se lapidou na iluminação lírica. Como é o caso do lindo poema dedicado ao nosso poeta TT Catalão:”teu velório foi uma festa/não vou dar detalhes/porque sei que você também estava lá”.