O jardim de Amílcar de Castro

Publicado em Crônicas

 

Severino Francisco

 

Parece que as 60 esculturas de Amílcar de Castro instaladas nos jardins do CCBB foram encomendadas especialmente para o espaço. Elas estabelecem um diálogo muito rico não apenas com a arquitetura de Niemeyer, mas também com a espacialidade e com a aspereza da vegetação do cerrado.

 

Amílcar cultiva um jardim de plantas da probabilidade, do aleatório e do acaso. As 12 carretas que transportaram as 60 peças de Amílcar de Minas Gerais para Brasília pesavam mais de 250 toneladas. Mas, insolitamente, as esculturas passam a impressão de leveza. E esse efeito é provocado pelas únicas duas intervenções que ele faz no ferro: os cortes e as dobraduras.

 

O poeta e crítico Ferreira Gullar foi implacável com a arte contemporânea. No entanto, ele escreveu alguns dos melhores textos sobre Amílcar, amigo e colega do movimento neoconcreto. O artista plástico desenhava na folha em branco e, em seguida, recortava o desenho e o dobrava. No ato, surgia a terceira dimensão.

 

Segundo Gullar, Amílcar trabalha com grossas chapas de ferro e a forma é o próprio ferro, que, à força de cortes e dobras, ultrapassa a condição de matéria muda: “A placa opaca e densa é a negação do significado e a possibilidade dele: nela o artista insere a sua ação transformada, sua fala possível, que tanto é resposta quanto indignação. É uma nova idade do ferro. Amílcar atua tensamente entre a placa anônima e a figura: deixar a placa intocada é não falar: transformá-la em castelo, cavalo ou gente é dissipar-lhe o mistério”.

 

Gullar enfatiza que se observarmos o caminho percorrido por Amílcar em quase trinta anos, veremos que ele se atém a uns poucos e mesmos elementos, sem se afastar de sua proposta básica e radical: “o plano e a ruptura do plano que abre o espaço”.

 

Ao convidar grandes artistas do modernismo para fazer intervenções na arquitetura de Brasília, Niemeyer queria que a arte estivesse presente na cabeça dos que tomam as decisões sobre o país. Talvez ele tivesse sido um tanto ingênuo. No entanto, a arte permanece viva como espaço simbólico e utópico do melhor que poderíamos ser.

 

É pena que esse projeto da Brasília original tenha sido interrompido pelo regime militar e por governos democráticos de poucas luzes. A cidade-parque é muito adequada ao diálogo e à interação com a arte contemporânea, que é, muitas vezes, uma arte ambiental. Talvez em outra cidade ela soe deslocada, mas em Brasília a arte contemporânea está em casa.

 

O grupo Udigrudi construiu uma série de brinquedos musicais para uma exposição, que ocupou o espaço do CCBB, o Diversom, com esculturas sonoras interativas. As crianças escorregavam, escalavam ou pisavam e produziam sons musicais. Era uma experiência muito inventiva que deveria ter sido incorporada ao espaço de maneira permanente, como um patrimônio da cidade, pois o CCBB é um espaço muito frequentado pelas crianças.

 

Por isso, é preciso saudar a iniciativa do CCBB de trazer obras de Amílcar de Castro e de Hélio Oiticica para Brasília. A cidade deveria renovar, constantemente, o acerco de arte contemporânea. Brasília poderia ser uma Inhotim em ponto grande e ter ainda mais atrações para a vida cotidiana e para o turismo, sem prejuízo de nenhuma de suas outras funções. As esculturas ficam muito bem no CCBB, que, na verdade, é um grande parque, transpassado pela vegetação do cerrado, dentro da cidade-parque.

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