Por Isabela Berrogain
O dia 30 de setembro de 2013 marcou o fim de uma era da cultura jovem brasileira. À 0h01 do dia 1° de outubro do mesmo ano, saía do ar a “velha MTV Brasil“, após o fim do vínculo do Grupo Abril com a Viacom, que detém os direitos da marca internacionalmente. Em território nacional, a emissora foi mais que um canal de televisão — ao longo de 23 anos, a MTV foi música brasileira, mudança de comportamento e quebra de tabu. Uma década após o temido fim, o sentimento de nostalgia ainda prevalece quando o assunto é o canal jovem que ficou marcado na história na TV brasileira.
“A MTV é inimitável”, declara Luiz Thunderbird, um dos apresentadores mais emblemáticos do canal. A história de Thunder vai de encontro direto com o surgimento da emissora, ainda em 1990, ano em que foi escolhido a dedo para ser um dos rostos do canal. “Quando eu fui contratado, não fazia a menor ideia do que era ser VJ (termo popularizado pela MTV referente aos apresentadores da casa). Ninguém sabia no Brasil, a não ser quem já tivesse morado em outro país e tivesse visto a MTV estrangeira. Aqui, ninguém sabia o que era ser VJ, o que era MTV. Eu fui aprendendo”, relembra o paulistano.
Curiosamente, a falta de experiência e até mesmo de conhecimento era exatamente o que a MTV procurava. A maioria dos apresentadores da emissora eram pessoas até então inexperientes, selecionadas para crescer em frente às câmeras, desprendidas de qualquer formalidade da televisão aberta da época, o que foi capaz de gerar uma identificação única com o público-alvo do canal. “O jovem queria ser VJ. Todo mundo queria ser VJ”, afirma Thunder. “A gente saía com o carro da MTV e as pessoas paravam para pedir um adesivo da MTV. Às vezes, eu tinha uma camiseta da MTV e dava para o pessoal e eles choravam, porque ganharam uma camiseta da MTV. A febre foi gigantesca.”
O segredo por trás de tanta popularidade é simples: a MTV foi o único canal da televisão aberta que levou o jovem a sério. “Algumas pessoas da TV aberta falavam que a MTV não tinha representatividade nenhuma. A MTV tinha representatividade com quem importava, com o jovem. Podia não ter com o dono do aparelho de TV, mas tinha com o filho do dono. É isso que as pessoas não entendiam. A gente foi direto no alvo, e o alvo era o jovem. E o jovem queria ouvir música, se informar sobre música, se informar sobre comportamento, e a MTV dava música, cultura, informação, comportamento. A gente mudou o comportamento do jovem no Brasil”, assegura Thunder.
Fugindo à regra de todos os canais de televisão, a audiência nunca foi prioridade na MTV. A liberdade dada aos VJs da casa era tamanha que, ao ser descrita, soa quase como uma utopia. “Eu pedi para fazer um programa louco e eles falaram: faça. A partir daí, eu fui pedindo: eu quero fazer um programa fora de estúdio, na rua. Eles respondiam: faz. ‘Eu quero fazer um programa de duas horas de duração’. ‘Tudo bem’. ‘Eu quero escolher os clipes. ‘Pode escolher’. ‘Eu quero gravar de madrugada’. ‘Fique à vontade’. Eu pensava: esses caras são mais loucos que eu. Eles tinham montado uma emissora de televisão e eles falaram para mim, esse louco aqui, ‘faz o que você quiser. Sinta-se à vontade'”, recorda.
A VJ MariMoon, cara da MTV do início dos anos 2010, também compartilhou da experiência: “Meu primeiro programa foi o Scrap MTV, que era o sonho da minha vida. Quando fui contratada, eles me perguntaram: o que você gostaria de fazer? Eu fui descrevendo e eles falaram: então é isso. O programa foi baseado no que eu queria fazer”.
Muito além de música e entretenimento, a emissora, regada da sua tradicional irreverência e informalidade, deixou um legado único, que marcou gerações. “Eu sinto que a MTV tinha total noção dessa responsabilidade de ser uma espécie de irmã mais velha de toda essa galera. Então, a gente tinha desde vinhetas do tipo ‘desligue a TV e vá ler um livro’, uma coisa que eu acho que nunca existiu em nenhum outro canal de televisão na história, a programas de educação sexual, que são tabu até hoje”, avalia MariMoon. No livro MTV bota essa p#@% pra funcionar, Zico Goes, um dos principais “chefões” da emissora, ressaltou que pesquisas mostraram que a audiência da MTV tinha o hábito de usar camisinha com mais frequência do que os jovens que não assistiam ao canal.
Em meio a achismos e teorias, muitos apontam o boom da internet como um dos principais responsáveis pelo fim da MTV. Na prática, porém, o mundo virtual não faz jus à herança deixada pelo canal. “A MTV tinha um papel não só de informar sobre música, mas também comportamental e educacional, que era levado de forma muito séria. Hoje, isso está muito pulverizado. Nós temos conteúdo sobre tudo, só que é difícil achar onde tem exatamente um canal legal, sério, interessante e bom para o jovem. Tem de tudo na internet — gente educando de forma legal e gente deseducando também. A MTV, por sua vez, era esse lugar seguro para o jovem estar e consumir conteúdo”, pondera Sabrina Parlatore, VJ da emissora durante os anos 1990.
Hoje, a lacuna deixada pela MTV continua em aberto, e o que fica é a saudade dos anos de ouro do canal, feedback recebido constantemente pelos ex-VJs. “Todo mundo que conversa comigo fala a mesma coisa: a falta que faz a MTV. Não só por falar de música, mas por falar de comportamento, por falar de consciência política, por quebrar tabus, porque a MTV quebrou todos. O primeiro beijo gay, por exemplo”, destaca Thunder.
A cena histórica aconteceu durante o programa de relacionamento Fica comigo, apresentado por Fernanda Lima, em 2001. “Quando a Fernanda falava de namoro na TV, não era namorinho. Era o primeiro casal gay se beijando na TV. Quando a gente falava que aids era uma coisa séria e que não tinha que ter vergonha de usar camisinha, era campanha de saúde pública. A televisão brasileira era tão careta, conservadora e reacionária que não podia falar sobre isso, mas a MTV falou”, salienta o apresentador.
No Brasil, a MTV continua no ar como canal pago e com nova programação, sob o guarda-chuva da Paramount.
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