Santiago, Chile — Os rumos da primeira infância no Brasil nos próximos quatro anos foram selados com o resultado final das urnas no último domingo. A partir de 1º de janeiro de 2019, recairá sobre o presidente eleito, Jair Bolsonaro; o governador eleito do DF, Ibaneis Rocha; e os governadores dos 26 estados parte considerável da responsabilidade pelo futuro das crianças de até 6 anos do país. Com vontade política e gestão adequada, eles podem fazer muito por elas — ou não. Os novos governantes têm o potencial de acelerar e intensificar o desenvolvimento infantil, caso abracem a causa e a tratem como prioridade.
Um investimento que se provou melhor do que qualquer outro: além do retorno social, cada dólar gasto com o início da vida uma vez traz um retorno anual de mais de 14 centavos por criança pelo resto de seus dias. O cálculo é do economista estadunidense James Heckman, ganhador do Prêmio Nobel da área no ano 2000. Os efeitos da decisão política de priorizar a primeira infância não precisam se limitar a um mandato, desde que o tema seja objeto de uma política de Estado e não de governo. É o que aconteceu no Chile, país que mais investe na primeira infância da América Latina. Lá, o programa Chile Crece Contigo, adotado a partir de 2006, tornou-se lei em 2009 e continuou mesmo após a saída da ex-presidente Michelle Bachelet, que iniciou o projeto.
Ela e Sebastián Piñera, atual presidente chileno, “revezam” o comando do país desde então. Michelle Bachelet teve dois mandatos (2006-2010 e 2014-2018) e Piñera começou, em março deste ano, seu segundo, após presidir a nação latino-americana de 2010 a 2014. Apesar de os dois serem opositores na política, quando o assunto é primeira infância, eles se tornam aliados, cada um contribuindo para a melhoria e a expansão do programa. O sistema de proteção da primeira infância do Chile tem a missão de apoiar plenamente todas as crianças e suas famílias por meio de uma abordagem multissetorial e multidimensional.
Na prática, elogios
A auxiliar de limpeza Janira Gomez Espinosa, 24 anos, cria sozinha dois filhos, de 5 e de 3 anos. A família vive em La Pintana, uma das comunas mais pobres da região metropolitana de Santiago e, apesar das dificuldades, Janira se sente muito apoiada pelos serviços do Chile Crece Contigo. “Os kits de estimulação, todos os materiais são muito bons. Por meio de folhetos e oficinas para pais, nos dão orientações sobre como cuidar das crianças. Para mim, é muito bom”, elogia. O filho mais novo, Vladimir, apresenta um atraso na fala. Janira o leva para consultas no centro de saúde da região, que conta com uma sala de estimulação e a participação de fonoaudiólogos, enfermeiros e educadores. “Todos os profissionais nos atendem muito bem.”
Comparação
Estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de 2016 revelou que o Chile destina US$ 882 anualmente a cada criança de até 5 anos, sendo o país da América Latina que mais investe no segmento. Em segundo lugar, aparece o Brasil, reservando US$ 641 por criança nessa faixa etária. Em ambos os casos, o montante equivale a 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Assim como as outras nações latino-americanas, Chile e Brasil ainda investem cerca de cinco vezes mais nas crianças de 6 a 12 anos do que nas mais novas (cerca de US$ 2.608 por ano no caso do Chile; e US$ 2.179, no Brasil — 1,7% e 2,3% do PIB de cada um respectivamente).
Modelo replicável
Alejandra Cortazar é pesquisadora do Centro de Estudios Primera Infancia. O grupo lançou um relatório de monitoramento da Agenda Regional para o Desenvolvimento Integral da Primeira Infância, acordo de metas assinado por diversos países latino-americanos, incluindo o Brasil. “A partir desse monitoramento, vemos que é consenso que Chile Crece Contigo é uma política muito relevante em termos de infância no país e na América Latina.” Tanto que o modelo foi adaptado e replicado em outros países, como Colômbia, Uruguai e Panamá.
Questionada se um sistema semelhante funcionaria no Brasil, Alejandra, que é doutora em políticas para a primeira infância e mestre em psicologia do desenvolvimento e da criança pela Universidade de Columbia, não tem resposta pronta. Ela avalia, porém, que, diferentemente do que se possa pensar, a dimensão geográfica e social não seria um empecilho. “O país tem de estar disposto a investir em infância para dar certo. No Chile, foi uma política feita com padrões de qualidade superaltos, o que exige um alto investimento”, pondera.
Membro diretora da Fundación Educacional Oportunidad e conselheira da Agencia de Calidad de la Educación, ela observa que a iniciativa foi uma mudança de paradigma com relação à qualidade que a população pode esperar de algo público no país dela. “Qualquer pessoa que tenha vivido no Chile nos últimos 10 anos sabe que houve uma mudança importante em um monte de temas a partir de Chile Crece Contigo, incluindo no processo de humanização do parto, a inclusão dos pais, o apoio às famílias, os materiais entregues, a integração de setores”, avalia.
“Tudo isso dignificou a infância e as famílias no processo de ser pais. É raro no Chile ver coisas públicas de excelente qualidade, e todo o material do programa é do mais alto padrão. É um tratamento muito pouco comum”, diz. “É algo totalmente diferente ao que estamos acostumados. Então, é um país que está entregando qualidade para as crianças pequenas e, assim, deixando claro para a sociedade a importância delas. Houve uma mudança de mentalidade no povo com relação a valorizar o início da vida.”
Resultados
O impacto é bastante relevante: 90% das crianças de 4 a 5 anos frequentam escola de educação infantil; a taxa de frequência de creche entre crianças de 3 anos quase dobrou entre 2006 e 2015, passando de 16,4% para 30%. Ao monitorar meninos e meninas de perto por várias frentes (saúde, assistência social e educação), é possível detectar sinais de atraso no desenvolvimento precocemente e iniciar estimulação específica, o que resultou em 42% das crianças com algum tipo de deficit acompanhando as demais. Afinal, um dos lemas do programa é “não deixar nenhuma criança para trás”.
A política pública abarca grande variedade de ações, desde atendimento pré-natal, promoção da paternidade ativa, subsídio para gestantes em situação de pobreza, visitas domiciliares, kits (de brinquedos, livros, roupas e outros materiais), oficinas para mães e pais, creche, jardim de infância e linha telefônica de apoio psicológico para pais. Gerido pelo Ministério de Desenvolvimento Social do país, o programa envolve também os ministérios de Educação e Saúde. O orçamento anual do programa é da ordem de US$ 83 milhões, o que não constitui todo o investimento na primeira infância no país.
Trabalho conjunto
Bacharel em educação pela Universidade do Chile e doutora pela Universidade de Granada, Pamela Rodríguez Aceituno avalia que o programa foi um grande marco do país em relação à primeira infância. “O Chile Crece Contigo deu visibilidade à necessidade de cuidado com as crianças em um sistema público que, de alguma maneira, articule distintas ações e áreas.” Chefe de pedagogia na educação infantil da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Chile, ela acredita que uma das maiores contribuições do programa é o fortalecimento das famílias. “A política estimula o bom cuidado dos pais. Há uma cartilha e uma oficina chamada ‘Ninguém é perfeito’ que mostra que o programa não vai julgar ninguém por ser pobre, solteiro, mulher, imigrante, adolescente ou qualquer outra coisa”, diz.
“Ao contrário. Entendendo a sua situação, o sistema ajudará e apoiará as pessoas para que sejam bons pais e boas mães independentemente disso. É como se o governo dissesse: entendo suas condições, por isso te ajudo”, afirma. Assim, Chile Crece Contigo significou uma mudança de visão no sistema de proteção infantil. “Saímos da abordagem protecionista e tradicional, de simplesmente invalidar os pais e de recolher as crianças daqueles com menos condições para a abordagem de ajudá-los para que eles cuidem bem das crianças”, destaca. Pamela relata que muitas famílias conseguiram se reconectar com o prazer de brincar e conviver com crianças pequenas.
» Leia amanhã sobre como funcionam berçários, creches e jardins de infância no Chile
* A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
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