Um sarau para João Tomé

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Antes havia o piado da seriema, um dos poucos sons a quebrar o silêncio do ermo onde seria erguida a nova capital. No final de 1956 chegaram os homens: inicialmente, 256 trabalhadores; em janeiro de 1957 já eram 2.500 e em julho se contavam 12.283 candangos. Aí já era possível ouvir uma viola ou uma sanfona, o serviço de alto-falante; mas só com as transmissões da Rádio Nacional, dois antes da inauguração de Brasília, é que a música entrou de vez na vida da cidade.

E entrou com força. Talentos foram garimpados em todos os cantos para formar o cast da emissora que, além de transmitir para todo o Brasil o andamento das obras, distraia os trabalhadores com recados, jogos de futebol, a missa de domingo, corridas de cavalo e, claro, música. Ao vivo.

Um dos músicos contratados foi João Tomé, que veio de Uberaba, Minas Gerais, e onde se destacava como instrumentista e compositor. Nunca mais deixou a cidade. Morreu em 1971 e deixou uma marca que vem sendo redescoberta a cada dia, graças ao trabalho dos filhos, que nunca deixaram que ele fosse esquecido.

A vida e a obra de João Tomé estão sendo escrutinadas em um documentário, um desafio hercúleo e que busca mostrar a música que ele deixou. Não é fácil. São cerca de 800 canções, principalmente choros e valsas – todas registradas em partitura, muitas gravadas por diversos artistas, num esforço de preservação de memória exemplar, conduzido principalmente pelas filhas Dolores e Alcione.

Dias atrás foi realizado um concerto repleto de músicos, convidados a executar canções de Tomé. Quem esteve na Quituart, no Lago Norte, viu um espetáculo emocionante, uma celebração à beleza feita a partir de um desfile de valsas e choros que foram registrados em som e imagem para o documentário – que obviamente trará entrevistas com algumas pessoas que conviveram com o músico mais de perto ou foram influenciados por ele.

Um dos destaques foi o cavaquinho de Márcio Marinho que encerrou a noite tocando dois choros. Mas a família também tocou, vieram músicos de Uberaba, gente que não conheceu o compositor – e nem havia nascido quando ele morreu – e uma plateia participativa. Tomé merecia uma celebração assim.

João Tomé participou da criação da Escola de Música, do Clube do Choro, tocava na noite e foi responsável pela formação de muitos músicos. Cego de nascença, impressionava os amigos com a facilidade que demonstrava para criar canções – dedicou algumas à mulher, aos filhos, aos amigos, e produzia em escala industrial. São quase sempre temas curtos, estruturados e com melodias concatenadas, tudo ao gosto da época.

Outros chorões e compositores dos anos mais áridos de Brasília mereceriam uma homenagem como esta. Gente que deixou sua marca, mas que o tempo implacável apaga. Se a cidade é hoje um polo de instrumentistas é graças a ação de pioneiros como João Tomé, que abriram todas as portas, das escolas arejadas aos inferninhos esfumaçados, para que Brasília tivesse uma música para chamar de sua. Que o filme fique pronto logo.

Publicado no Correio Braziliense em 24 de fevereiro de 2023

Paulo Pestana

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