Como se faltassem polêmicas recentes, volta-se a falar do racismo na música brasileira e, de novo, da letra da marchinha O Teu Cabelo não Nega, de Lamartine Babo. Pois o carnavalesco da Imperatriz Leopoldinense, escola que vai homenagear o compositor no ano que vem, vai mudar a letra do samba – o mesmo de 1981.
O pessoal reclama de ouvir “mas como a cor não pega/ mulata eu quero seu amor”; é racista, mas era o mundo em 1932. Talvez a reação fosse menor se soubessem que o arranjo da marchinha é de Pixinguinha, também diretor da orquestra na gravação original, de Castro Barbosa. Ainda menor se soubesse que o pistom que se ouve ali é do estupendo Bonfiglio de Oliveira.
A nota racista da história ocorreu no lançamento da música, nos salões do Fluminense. Irritados com a presença de artistas negros – Pixinguinha e Bonfiglio, entre eles – alguns sócios se retiraram do salão. E o que Lamartine não gostava de dizer é que os versos polêmicos nem eram dele, mas dos irmãos João e Raul Valença, e que eram de uma outra música, Mulata.
Por um desses acasos, esta semana herdei um dos “cadernos de letras” em que o pesquisador Renato Vivacqua reproduz de próprio punho, letras de canções hoje praticamente esquecidas, que ele encontrava esparsamente. E ali há uma boa medida de como a música brasileira tratou a questão racial; felizmente, pelo menos neste caderno, o saldo é positivo.
Para início de conversa, Haroldo Lobo e Wilson Batista fizeram Essa Vida não é Sopa, uma constatação biológica – “pra que ter orgulho, com o nosso esqueleto, se o branco e o preto, têm o mesmo fim”. O mesmo Wilson Batista, com Marino Pinto, tratou da desilusão amorosa em Preconceito: “Eu vou fazer serenata, eu vou cantar minha dor/ meu samba vai e diz a ela, que coração não tem cor”.
Há homenagens aos negros. Algumas destacando feitos heroicos, como Negro Artilheiro (1946), de Herivelto Martins e Sinval Silva, sobre a bravura dos os expedicionários. “Negro quando foi convocado/ Esqueceu seu roçado, e partiu para brigar/ Negro dispensou o ordenado/ Esqueceu que é casado e tem filho pra criar/ Preferiu brigar, preferiu morrer/ Pra que o filho crescesse e pudesse viver”.
Em O Negro e o Café, de Ataulfo Alves e Orestes Barbosa, buscava extrair poesia do terror. “Negro de ferro no pé, chorava muito e sangrava enquanto plantava café/ o café, fruto vermelho, transforma depois a cor, na cor da pele onde o velho, fez sangrar rubis de dor”.
Há até homenagens estapafúrdias, como Escurinha (1950), de Leduvy de Pina e Brasinha: “Da cor do petróleo, a escurinha tem cartaz/ quebra qualquer monopólio, manda mais que a Petrobrás”.
Mas o preconceito era evidente, caso da marchinha surreal Cabelo Couve-Flor (1946), de Pereira Matos e Ayrton Amorim. “Eu vi sair, lá de dentro do vapor, uma nega de luneta e de cabelo couve-flor/ quando eu vi aquela negra tão bacana, eu pensei que ela fosse uma artista americana/ dei risada quando ela me falou: eu sou a nega maluca do carnaval que passou”.
Preconceito a gente combate, mas a História não se apaga.
Publicado no Correio Braziliense de 24 de agosto de 2019
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