Os mandamentos do botequim

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Engana-se quem pensa que os botecos são terra de ninguém. Mesmo o muquifo mais soez preserva a autoridade ditatorial do proprietário, quase sempre um sujeito – ou sujeita – de maus bofes, cara fechada e resmungão. As normas estão nas feições do dono, mas algumas estão escritas pelas paredes dos ambientes, caso clássico do “fiado, só amanhã”.

Ultimamente tem aparecido umas frases engraçadinhas – “minha vida é um litro aberto”, “proibida a entrada de bêbado; sair pode” – mas só servem para bar que tem toddynho. Boteco de responsa não é lugar de fazer essas graças, embora o mau humor seja uma exclusividade do bodegueiro.

A ordem dos botecos também é mantida por algumas leis não escritas, como aquela que proíbe perturbar o garçom – até porque a vingança pode ser maligna e surgir boiando no copo. Não há exatamente uma constituição do bar, até porque se ninguém respeita a do País, a do boteco só teria serventia no banheiro.

Ninguém sabe o que aconteceu exatamente, mas outro dia o pacato Milton Barbosa, servidor aposentado de riso fácil, conhecedor dos meandros das bodegas desde o interior paulista, apareceu no recinto com um pergaminho – na verdade era um pedaço de papel. Era um decálogo.

Qual um Moisés de Cecil B. de Mille – embora Milton escanhoe a barba e seja muitos centímetros mais baixo que Charlton Heston – ele estava apresentando seus 10 mandamentos para o frequentador de boteco. Pessoa de fino trato, provavelmente estava cansado da balburdia do lugar.

E baseado na larga experiência em enfrentar chatos, poetas, sabe-tudos, prolixos e até os gente-boa, anotou civilizadas regras para a boa convivência no bar. É o ponto de vista de um sonhador; talvez funcionassem se aplicadas na Casa dos Lordes, de Londres, como se vê:

  1. Fale baixo, pois o ouvido do colega não é microfone;
  2. Fale pouco e ouça mais, pois a natureza nos deu dois ouvidos e apenas uma boca;
  3. Não bata a mão na mesa, principalmente se estiver de anel ou aliança;
  4. Não bata o copo na mesa; essa atitude é irritante;
  5. Seja breve e objetivo nas suas observações, pois outras pessoas também gostam de se manifestar;
  6. Não interrompa o raciocínio de quem estiver falando, principalmente se você for abordar assunto diverso;
  7. Não coloque cerveja no copo do colega; a maioria não gosta dessa gentileza;
  8. Evite manifestar e discutir suas posições políticas e ideológicas pois nesse ambiente você não conseguirá mudar a opinião de ninguém, além de causar constrangimento em quem delas não compartilhar;
  9. Não discuta ou crie celeuma em torno de qualquer assunto, pois o Google está à mão para dirimir qualquer dúvida.
  10. Não queira ser polêmico; os colegas estão no ambiente para espairecer, e não para criar contraditório.

Para desinteirar o decálogo o valoroso Milton acrescentou um epílogo, o undécimo mandamento: “nunca se esqueça de que em mesa de boteco você deve ser sempre um mero coadjuvante, e nunca um protagonista”. Esse é o ponto mais contestável: ninguém ali se sente menos que dono do mundo.

Publicado no Correio Braziliense em 28 de fevereiro de 2021

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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