O velho boteco no novo normal

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Faz mais ou menos 12 mil anos que os homens decidiram parar de zanzar de um lado para outro e começaram a se juntar em vilas. Nesta época algumas pessoas começaram a exercer ofícios: uns começaram a produzir roupas, outros faziam armas e ferramentas, alguns cultivaram alimentos e domesticaram animais – nascia o comércio.

Nenhum paleontólogo confirma, mas é quase certo que ali no meio tinha uma birosca – ainda que não existisse bebida alcoólica nessa época, provavelmente já tinham inventado a conversa fiada e se contavam mentiras neolíticas.

O que se sabe, de fato, é que os sumérios, 3.500 anos antes de Cristo nascer, já se reuniam num local para beber cerveja, sempre servidos por uma mulher, a dona da taverna. Ou seja: é uma tradição de pelo menos 5.500 anos e que alcançou etruscos, romanos, godos, visigodos, celtas; só piorou quando a administração passou a ser masculina, criando outra tradição: os bodegueiros homens-das-cavernas, que sobrevivem até hoje.

É por isso que pode mexer, sacudir e virar; o mundo pode ser outro depois dessa virose pandêmica, mas certamente os bares vão sobreviver – incluindo os proprietários neandertais – para, mais uma vez, exercer seu papel de despressurizar a sociedade.

Os otimistas dizem que as pessoas vão repensar o consumismo desenfreado, os luxos desmedidos, buscar a essência do ser (seja lá o que for isso), exercitar a humildade. Duvido muito dessa remissão coletiva, mas posso garantir que, terminada a quarentena, as biroscas serão nova e alegremente ocupadas.

Vamos matar a saudade do mau humor do proprietário, do copo imundo, da tripinha frita e adiposa, do banheiro cheirando a água sanitária, da vida alheia – convenhamos, fuxico pelo zap é só meio-fuxico -, da camaradagem, da cerveja tão estupidamente gelada que desce sem sabor, da boa conversa e, claro, das soluções que o mundo precisa para seguir girando em dois eixos, o que pode explicar a constante vertigem da natureza humana.

No botequim, como no velho oeste, ganha quem saca primeiro. Piscou, leva bala. Hoje não acredito que ainda haja algum bar – pelo menos não em Brasília – com um trabuco escondido sobre o balcão para acabar qualquer furdunço com um ou dois tiros para o alto, mas o dono do estabelecimento ainda tem que ficar de olho no comportamento do freguês, com poderes para parar de servir e até de confiscar a chave do carro.

O boteco é o único ramo do comércio em que o freguês nunca tem razão; em alguns é tratado como inimigo e deve ser por isso que os casados se sentem no próprio lar. Tanto que na volta ao reino dominado pela senhora muitas vezes se é recebido com uma exclamação: “Achei que não ia voltar mais!”; ou, com a ainda mais clássica, “não tem mais casa, não !?”.

Hoje temos botequins fofos, que servem linguicinha com fio de ovos e isca de peixe frito sem óleo com geleia de goiabada como petisco, cadeiras com encosto ergométrico, drinques coloridos e até, pasmem, garçons educados. Esses não fazem falta. Os pés-sujos nos acompanharão até o apocalipse.

Publicado no Correio Braziliense em 5 de julho de 2020

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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