Toda vez que via um sommelier cuspindo o vinho que acabara de provar, meu amigo reclamava: “Que desperdício! Se fosse eu bebia tudo”. Era só um chiste, nunca gostou de vinho, jamais abandonou a dourada cerveja – antes a faixa azul da Antárctica, hoje dando preferência à Original ou Stella Artois.
Não é apenas uma preferência; desde a adolescência derruba garrafas com tal volúpia que os amigos acham que ele gostava mesmo é de ouvir o barulho da tampinha sendo aberta.
Eis que o amigo cervejeiro seguiu a estrela que o destino marcou na testa dele e abriu um botequim. Houve apreensão inicial, justificada – muitos achavam que ele acabaria com o estoque. Mas passou.
Já são dez anos de atividade, um sucesso com freguesia fiel, feliz com o tratamento e liberdade que um bom estabelecimento dá. Ele se mantém fiel à cerveja, continua alternando aquele mal humor típico de dono de bar com a felicidade que extrai do copo, mas a profissão pediu mais.
O fino paladar dos frequentadores exigiu que ele colocasse algumas garrafas de pinga à venda, o que inicialmente foi feito a partir dessas listas que são publicadas aqui e ali, cheias de jurados que fazem cara de entendido.
Nada de aguardente popular, dessas misturadas e que só servem para esquentar as tripas depois de agir pelas entranhas, uma mistura de diabo verde com soda cáustica. Mesmo que não tivesse nenhum nome a zelar, cuida da freguesia.
De vez em quando provava uma dose, tirava o sabor; começou a comentar, descobrir as diferenças do retrogosto deixado pela madeira dos barris, a qualidade das branquinhas. Virou um conhecedor. Sem abandonar a cervejinha.
Dias atrás, em viagem a Belo Horizonte, aproveitou para renovar o estoque do boteco. As cachaças mineiras têm o dom de enfeitiçar. A mistura do terroir – a relação entre o micro-clima e o solo de determinadas regiões – com a alambicagem no ponto exato oferecem condições ideais.
Há pinga boa em outras regiões do país. Paraíba, interior de São Paulo, Santa Catarina e Goiás, por exemplo. Mas em nenhum lugar há tanta pinga boa quanto em Minas. E o nosso amigo estava atrás de rótulos novos, ainda desconhecidos, até porque não queria pagar as exorbitâncias que cobram quando a cachaça chega à fama.
A simpática vendedora fez as apresentações. Abria uma garrafa, botava uma dose no copinho e oferecia: bebe essa! E mais outra, outra. As que ele gostava mandava logo separar algumas garrafas.
Se esqueceu da lição do sommelier, que bochecha e não bebe o vinho. Ele não só bebia tudo como estalava os beiços em sinal de aprovação. Na quarta dose, ficou bonito; na quinta começou a esbanjar valentia e na oitava estava – além de valente e gostoso – rico. Muito rico.
Foi arrastado à força do local. No dia seguinte, cara inchada, gosto de cabo de guarda-chuva, só tomou fanta uva. As garrafas de cachaças estão no Butiquim do Tuim, na Quituart, mas ele nem olha para elas. São conhecidas como “as que derrubaram o dono”.
Publicado no Correio Braziliense, em 17 de janeiro de 2020
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