O sarau improvisado

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Bares com as portas novamente abertas, o negócio agora é se adaptar ao horário. Para ver futebol, só se for campeonato europeu por causa do fuso horário, para ver os jornais da tevê, não se pode ir além dos programas vespertinos, regados a sangue; a opção é o velho papo. Mas não tem sido fácil.

A turma vesperal dos botecos tem pouco a ver com os notívagos. No tempo em que se podia falar português claro, eram chamados de braçais, uma rapaziada que pega no batente pesado, de mãos calejadas, orelhas secas – hoje soaria rude para esse pessoal de língua delicada, que acha que o mundo será melhor quando emudecer.

Mas a moçada da noite está chegando mais cedo, se misturando e buscando o entendimento, porque na lei do botequim não se nega fogo e papo.

Ao contrário do que muitas esposas e detratores imaginam, botequim é lugar de cultura. É só dar um pouquinho de sorte e escolher o boteco certo para encontrar poetas, intelectuais e pensadores de todas as vertentes. Risco é só comer um croquete frito no dia anterior, tomar uma pinga misturada ou um uísque batizado; o resto vale.

A democracia do bar exige que todos tenham direito a opinião, até mesmo aquele sujeito que fica na ponta do balcão, gritando. Bar é lugar de aproximação, onde se admite até mudança de posição, até porque depois que a ministra deu um giro de 180 graus em seu voto, todo mundo se sentiu liberado para virar metamorfose ambulante.

Claro que há censura, mas sempre determinada pela razão; a regra deve ser sempre a tolerância, embora de vez em quando os ânimos se acirrem e abrem espaço para um quebra pau. E o frequentador de bar não se esconde atrás de um avatar, de um pseudônimo ou de uma identidade falsa como o pessoal que faz palanque nas redes sociais.

A chegada do pessoal vespertino tem alterado essa relação, mas o boteco é também lugar de surpresa. Depois de ouvir nosso amigo advogado metido a poeta declamar Manoel Bandeira, o rapaz de roupas humildes, certamente desinibido pela cerveja que tomava no balcão, disse que também conhecia um poema. E começou a narrar uma história de terror de um homem atormentado pelas árvores que abatia, até se arrepender. Só deu para gravar uma parte.

Beijano o gaio e chorano

Dizia: muito obrigado!

Deus te faça abençoado

Todo ano ter verdor

Vou arrebentar meu machado

Não serei mais lenhador

Depois da jura santa

Pra ter de todas as prantas

A graça, o perdão inteiro

Dos crimes de homi ruim

Foi se fazer jardineiro

E não fazia outra coisa

Senão tratar do jardim

A vó, que já carregava

Mais de setenta janeiros

Dizia que neste mundo

Nunca viu jardineiro

Que fosse tão bom assim

Dormia todas as noites

Deixando a janela aberta

Pra escuitar todo o rumor

E às vezes inté altas horas

Ficava ali na janela

São versos de Catulo da Paixão Cearense (foto), narrados com sotaque nordestino e erros criados pelo próprio poeta. Só foi interrompido quando o bodegueiro disse que não podia mais vender bebida alcoólica, encerrando o sarau improvisado.

Publicado no Correio Braziliense em 4 de abril de 2021

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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