O sabor da vitrine

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Um boteco que se preze tem vitrine. Essa história de cardápio alcança, no máximo, um quadro negro escrito a giz e só para os pê-efes do dia; o importante mesmo fica naquela estufa quentinha sobre o balcão, onde jazem, mergulhados na banha, linguicinhas e bifinhos a rolê, ao lado de ovos cozidos e coloridos, uma travessa de torresmo e, supremo requinte, potes de tremoços e cebolinhas em conserva.

Mas não está fácil saborear essas delícias de botequim. Ainda mais se o cristão estiver acompanhado. “Você vai comer isso!”, disse-lhe a mocinha, carregando na dicção dos esses do pronome demonstrativo e terminando com um esgar. Não adiantou o rapaz explicar que era só uma entradinha, um petisco. Definitivamente, a comidinha da vitrine só faz sucesso no que antigamente chamávamos de “mundo de marlboro”.

No tempo em que havia comerciais de cigarro, o slogan dizia que esse mundo é o lugar onde os homens se encontram. Era, digamos, um cigarro viril, que explorava a imagem de um caubói – ainda não havia o filme Broadbeck Mountain para amenizar a imagem dos brutos. Mas isso é passado: hoje a Malboro anuncia o lançamento de um cigarro de maconha que não solta fumaça – vejam só.

Na era do mimimi, a vida de fumante – e nem é o meu caso – está difícil; mas é dura também a jornada do fiel botequeiro que, afinal, precisa se alimentar. Há uma diferença entre o petisco e o tira-gosto que precisa ser esclarecida: enquanto o segundo serve para matar o gosto da pinga ruim, o petisco deve vir antes da dose, para incrementar o sabor das boas caninhas.

E aí voltamos à vitrine. Ninguém nunca se importou se o pastelzinho era do dia, se a gordura endurecida mantém o perfil da linguiça ou se o molho é verde por causa da salsinha ou do mofo. Mas hoje esses pequenos prazeres são considerados pecados mortais, gravosos como um suicídio, e inclusive sujeito à mesma pena de danação eterna propagada pelo Papa Nicolau, bem antes do ano 1000.

É preciso reconhecer a qualidade da linha vegana do boteco. Uma rodelinha de caju, um jiló frito no fubá, cebolinha em conserva – têm seu lugar. Mas não há como dispensar uma manjubinha frita, uma salsichinha no vinagre ou o notório torresmo de barriga, todos eles vítimas da patrulha que prega o botequim saudável.

Dia desses a Nestlé, uma das maiores fabricantes de comida do mundo, reconheceu que mais de 60% de sua linha de produtos fazem mal à saúde, a maioria porque tem muito sódio, gordura ou açúcar. Nesta linha destrutiva, estão chocolates, biscoitos e sorvetes. E até o leite condensado – aliás, quem vai avisar ao presidente que ele está se matando quando come pão com leite Moça?

Vai ser difícil fazer o povo desistir de comer brigadeiro, trocar um chokito (que nem é da Nestlé) por salada ou uma cerveja por um iogurte saudável. Até porque, é como diz o filósofo Joãozinho: viver faz mal à saúde; todos os vivos acabam morrendo.

Publicado no Correio Braziliense em 15 de agosto de 2021

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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