Nossas lendas urbanas

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Pode ser por causa da tal profecia de D. Bosco, garantindo que na região onde hoje está Brasília correria leite e mel, marcando o nascimento da terra da promissão. Desde que essa história foi lembrada, a cidade começou a colecionar mitos. E a imaginação corre solta.

Bosco também previu uma “riqueza inconcebível” – talvez falasse da maior pepita de ouro do mundo, exposta aqui, no Banco Central, mas encontrada em Serra Pelada, Pará. Ou da imensa pedra de cristal – também maior do mundo – que está na ponta do tempo da LBV, importada de Cristalina.

As lendas começam no seminal X imaginado por Lúcio Costa, antes interpretado como avião, até que ele esclareceu que seria uma borboleta. O traçado teria alguma semelhança com a antiga capital sagrada do Egito, Akhetaton, o que levou gente a acreditar que Juscelino Kubistchek seria a reencarnação do faraó Akhenaton.

O negócio ficou tão sério que a demolição da antiga sede da CEB – uma das formas piramidais da cidade – foi feita em sigilo para não provocar uma manifestação de místicos. Eles, aliás, acham que o tarô e a cabala teriam orientado a arquitetura da cidade, caso do H formado pelas torres do Congresso.

As lendas também vêm do céu amplo visto do planalto, que atrairia extraterrestres. O mais importante ufólogo da cidade, General Uchôa, era um sujeito reconhecidamente sério e garantia, em livros e palestras, que eles faziam contatos. Não só ele. Ainda nos primeiros dias da capital um certo padre Raimundo fotografou o que seria uma nave sobre a Cidade Livre.

Por muitos anos, mocinhas eram levadas ao platô onde hoje está a Torre Digital na esperança de ver um disco. Corre a lenda que muitos brasilienses foram gestados nessas observações. Mas em 1968, dois vetustos deputados federais – Paulo Pinheiro Chagas e Bias Fortes – afirmaram ter visto uma nave na altura da Granja do Ipê.

E ainda teve o caso de Luis Carlos Paixão, servidor público, que teria sido perseguido, ele de carro, por cinco discos voadores em 1982.

Bem mais terreno, há o mistério do tal Massacre da Pacheco Fernandes, em que dezenas de operários teriam sido mortos – relatos mais confiáveis dizem que houve uma morte numa altercação, nada mais. Mas ainda hoje há quem alimente a lenda de uma grande carnificina, provocada por 60 soldados armados.

De real, sabe-se que os candangos viviam muitas vezes em condições subumanas – chegava-se a cortar a água para que não tomassem banho e não procurarassem diversão. Também nunca ficou provado que corpos de operários jazem no concreto de construções da cidade. Em tempos de pouca segurança para operários, houve acidentes e mortes, mas não se sabe onde eram enterrados os corpos; não havia o Campo da Esperança.

Mais bucólica, outra lenda conta que todo 21 de abril o sol nasce entre as duas torres do Congresso. Mentira.

Mas nessa história de D. Bosco a única coisa que chateia é que ele previu o fim do mundo para 2033. Aí não adianta mais esperar por leite e mel.

Publicado no Correio Braziliense de 19 de janeiro de 2010

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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