Literatura etílica

Compartilhe

Na parede do bar há um pôster desbotado do Vasco da Gama campeão brasileiro de 2000, um cartaz de propaganda de cerveja e uma tábua entalhada onde se lê “o dono tem razão”. Em cima de uma geladeira, a indefectível imagem de São Jorge Guerreiro enfiando a lança num dragão. Ou seja, nada naquele bar mostra qualquer sinal de sofisticação (exceto, talvez, uma garrafa de Chivas 12 anos no mostruário).

A conversa na mesa também girava em torno de assuntos comezinhos; coisas que passam na TV permanentemente ligada em algum noticiário, postagens que alguém leu na internet e mostra para comentar, fuxicos variados sobre amigos e principalmente inimigos, resultados do futebol. Nada de afetação, nenhuma conversa que mereça entrar nos anais dos botecos.

Foi quando o inesperado fez a surpresa. Um dos comensais começou a falar de um livro que estava lendo, fascinado pelo personagem principal. Narrou as desventuras descritas com ardor incomum para o ambiente, de repente transformado num daqueles clubes de livro, em que senhoras – e poucos senhores – conversam sobre o volume da semana, que todos têm de ler.

Mas não coube discussão: na mesa quase ninguém mais tinha lido O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório, que narra a busca de Pedro pelas origens da família, logo depois de ver o pai morto numa desastrada abordagem policial. E lá pelas tantas, empolgado, disse que era o maior personagem produzido pela literatura. Protestos gerais.

Se entre os imortais da Academia Brasileira de Letras se discute literatura tomando chá, naquela mesa o embalo vinha do uísque mesmo. E debate etílico, sabe-se, é mais acalorado. Mas cada um pode votar no seu personagem favorito.

Havia defesas apaixonadas, que alcançaram até as letras internacionais, com alguns lembrando de Hercule Poirot, de Agatha Christie, e até o neófito Robert Langdon, de Dan Brown. Como se vê não era uma mesa de intelectuais, mas de diletantes. Quem ganhava era Riobaldo, o misterioso jagunço de Grande Sertão: Veredas (na foto, na versão da TV) , seguido a boa distância pelo finado Brás Cubas, de Memórias Póstumas.

Mas isso só durou até alguém citar outro personagem machadiano, Capitu, a mulher de “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, que começou a virar os votos na medida em que se lembravam passagens que mantém acesa a dúvida da traição ainda hoje, tantos anos depois da descrição ciumenta de Bentinho.

Ele tinha certeza de ter sido traído no passado por seu amigo Escobar, mas o assunto não foi resolvido nem depois de um julgamento realizado por um jornal paulista, com advogados de acusação, defesa e júri.

Nunca se encontrou prova do adultério, mas Capitu virou até nome de uma macaca assanhada do zoológico de Brasília, que vivia um caso de bigamia fartamente noticiado pelos jornais. O fato é que todos se renderam mais uma vez ao fascínio da dúvida.

A única certeza que fica é que, mesmo diante de personagens ricos como Riobaldo, Diadorim, Emília de Lobato ou Macabéa de Clarice Lispector, mesmo naquele boteco, o povo só quer saber mesmo é de fofoca. Mesmo que seja ficção.

Paulo Pestana

Publicado por
Paulo Pestana

Posts recentes

A pressa e o tempo

Há poucos lugares mais opressivos que sala de espera de médico. Com essas clínicas coletivas,…

10 meses atrás

Um Natal diferente

Pinheirinhos de plástico com algodão imitando neve, um velhinho barbudo de roupa vermelha, renas do…

10 meses atrás

O espírito nas árvores

A cidade está colorida de novo. Agora são as árvores de cambuís, que vestem as…

10 meses atrás

A graça de cada um

Rir é o melhor remédio, diz o bordão popular. Mas certamente isso não se aplica…

10 meses atrás

Destino tem nome

Chegara a vez do homem de chapéu. A pele clara e castigada pelo sol tinha…

10 meses atrás

A derrocada da fofoca

E agora descobrimos que guardar segredos faz bem à saúde. As tais reservas – desde…

11 meses atrás