De ditado em ditado

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– A santo que não conheço, não rezo nem ofereço.

No interior do Nordeste, a sabedoria acompanha a memória do povo desde cedo; em qualquer lugar é possível encontrar alguém que, mesmo sem ter freqüentado escola por muito tempo, tem alguma coisa a ensinar, uma palavra sensata, frases que traduzem uma história inteira.

Foi assim no bar, onde a tevê está sempre ligada em jogos de futebol – qualquer um, até campeonato turco – e a mesa de sinuca de ficha parece abandonada, com feltro gasto. A voz forte tinha vindo do balcão.

Não sou exatamente paremiólogo, mas o tema interessa. Provérbios, ditos, adágios e máximas fascinam pela concisão, pela inteligência e pela sabedoria embutidas numa única expressão. Normalmente são frases autoexplicativas, diretas, que não pedem aprofundamento, embora haja exemplos elaborados.

O homem de voz gutural parecia gostar de falar por meio de provérbios. Vez ou outra, no meio do assunto, enfiava um ditado: “Não há domingo sem missa, nem segunda sem preguiça”, disse, quando falava que a vida na cidade continuava igual como sempre.

Tenho um amigo goiano que gosta de repetir os ensinamentos dos roceiros, para ele mais valiosos do que compêndios de filosofia. “Água que eu não bebo, eu sujo”, costuma repetir sempre que vê uma mesquinharia. Outra que ele aprendeu enquanto lidava com ávidos personagens da política: “o saco de querer não enche”.

Mas naquele ambiente simples, narrados no mesmo tom em que Charlton Heston ouviu os dez mandamentos quando viveu o Moisés de Cecil B. de Mille, os apotegmas pareciam ainda mais significativos. “Para derrubar uma árvore na metade do tempo é preciso passar o dobro do tempo amolando o machado”, disse ele a propósito de um assunto qualquer.

Resolvi anotar alguns: “Amizade remendada é como café requentado”, “caem as rosas, mas ficam os espinhos”, “boi ladrão não amanhece em roça”, “não se faz bom pano de algodão velho”. Para todo assunto ele sacava um ditado que funcionava como uma ilustração.

Eu era novato ali; apareci para tomar cerveja e filar uns minutos de futebol. Os demais o conheciam de praticamente todo dia. “Coice de égua não machuca cavalo”, disse, depois de concluir uma piada sobre marido e mulher. Mas “mulher com cabelo nas ventas, nem o diabo agüenta”, lembrou, caindo na risada.

O assunto virou para a economia. O verão não foi o prometido, choveu demais e para quem vive do turismo foi ruim. Só quem tinha plantado uma roça comemorava. O milho pegou sol demais, mas o feijão vai vingar bonito nos próximos dias. Ele sacou uma quadra de cordel: “Se o País fica mais rico/ O povo é quem padece/ Pois lá em cima sobe mais/ E aqui de baixo mais desce/ Do que vale mais dinheiro/ Se o Brasil é dos primeiros/ Onde a desigualdade cresce”.

Ele levantou-se, começou as despedidas, mas o neófito queria ouvir mais. Perguntei se ele voltaria ao bar no dia seguinte. Claro que a resposta veio na forma de ditado: “Cuidado, quem mexe com galinha acaba comendo farelo”.

Publicado no Correio Braziliense em 6 de abril de 2018

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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