Com o rabo entre as pernas

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Há mais ou menos 30 anos, músicos profissionais e amadores começaram a se reunir numa peixaria do final da Asa Norte. Eram diletantes; ninguém recebia nada pelo espetáculo, que não era feito para o público, mas para eles próprios, numa troca de vivências e talentos que melhorou a habilidade de muita gente.

A peixaria do Deraldo fechou, a 216 norte ficou sem graça, mas o bandolinista Coqueiro não desistiu e levou a roda para o final do Lago Norte, que herdou a mesma animação. Todos os domingos, final da tarde, samba e choro fechavam a semana.

A mudança já faz 15 anos. Os músicos se renovaram, Dionísio Della Penha – nome de batismo de Coqueiro – morreu, mas o choro continuou na calçada do bar No Grao. Suspensa na pandemia, a roda musical está voltando aos poucos, com outros músicos diletantes. Ou pelo menos estava. No último domingo, a truculência dos fiscais entrou em ação e decidiu fechar o local com a alegação de “exercício de atividade de alto risco”.

Fiscal do DF Legal, do alto de sua pseudoimportância, não explica nada. Se pelo menos conhecesse a Lei, saberia que o anexo VI do decreto 36.948 define como alto risco, abate de bovinos, equinos, bufalinos ovinos e caprinos. Ao que se saiba não são executados bois no pequeno comércio; muito menos búfalos, ao menos um bode. O maior perigo ali é uma eventual desafinada de um cantor aleatório.

O que parecia incomodar o fiscal Claudinaldo de Tal, que exibia uma reluzente corrente de ouro no pulso direito enquanto – cena de pastelão – buscava no google uma forma de tipificar a ocorrência, era a alegria demostrada pelos frequentadores do local com a música. Até porque a maioria das pessoas estava com máscara e preservava alguma distância.

Ele dizia, com a ajuda de outro fiscal, Wilson de Tal, que o local não pode ter música sem se dar conta que eram músicos que além de não receber nada por tocar ainda pagam a conta do que consomem.

Atrás dos instrumentos estão professores universitários aposentados, coronéis reformados, servidores públicos, gente comum, moradores do bairro. Mas os fiscais não viram nada disso; não viram sequer o alvará que permite o funcionamento do local até a uma da madrugada. Queriam apenas mostrar que podem fazer o que quiserem, ao arrepio da Lei.

Três policiais militares acompanhavam as ‘otoridades’, mas nem isso dava ar de seriedade às duas tristes figuras – era uma ignóbil caricatura do momento de truculência pelo qual passa o país. Os policiais estavam visivelmente constrangidos de ter que “proteger” a dupla dos moradores do local, gente pacata, que estava ali para se divertir um pouco, antes de mais uma semana de batente.

Os fiscais só não contavam com a reação da clientela, que protestou vivamente contra os absurdos, demonstrando claramente que aquele não era uma festa patrocinada, mas um congraçamento comunitário. Foram desmoralizados; o bar fechou, mas os moradores se abasteceram e permaneceram no local até que os fiscais se retirassem com o rabo entre as pernas.

Publicado no Correio Braziliense em 24 de outubro de 2021

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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