Coisas que falam

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Tem gente que conversa com botões; outros ouvem a voz da consciência e há quem fale pelos cotovelos. Os mais românticos seguem Bilac e, ora (direis) ouvem estrelas sem perder o senso, na certeza que é preciso amá-las para entendê-las.

Mas Roberto Nogueira Ferreira prefere ouvir seus velhos discos; não da forma que todos nós ouvimos, percebendo ritmos, letras e melodias que saem dos sulcos, via agulha, mas a partir de diálogos que explicam e justificam as obras que estão ali gravadas, na visão – ou melhor – na fala dos próprios discos.

E foi com os ouvidos atentos que escreveu um livro inteiro com discos guerreiros – A Sociedade dos Elepês indignados: A Revolta dos Bolachões. São mais de 350 páginas com diálogos engajados, entremeados com letras de canções que marcaram a história do Brasil como crônicas de suas épocas. Vez ou outra aparecem canções de amor, para deixar claro que os brutos também amam.

O autor não teve pretensão de fazer uma obra enciclopédica. Nada de datas, detalhes técnicos e estudos semióticos; só um relato passional em que aparecem canções e discos – do tempo em que eles realmente tinham formato de círculos chatos – em que não é obedecida nem a sequência lógica dos lançamentos, mas agrupamentos de afinidades. É uma conversa animada, sensorial e descompromissada. E gostosa de ouvir (ou ler).

Nas páginas, casos saborosos e pedacinhos de biografias entremeiam as canções, tornando os diálogos mais interessantes do que a simples impressão que o personagem Louco Por Vinil (LPV) tem das obras – ele é uma espécie de mestre de cerimônia da assembleia que instituiu a sociedade.

É assim que um breve período da vida de Taiguara é apresentado – com destaque para a destruição de um disco pronto e longo exílio – e é desvendado o truque para aprovar a canção Cicatrizes, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro (a música entrou num pacote de canções que seriam gravadas pelo ultrarromântico Agnaldo Timóteo, ludibriando os censores).

Não sei bem quando as coisas começaram a falar, mas elas são capazes até de revelar segredos. Pode ser uma algazarra, como no caso dos acumuladores que se recusam a jogar fora até mesmo um parafuso puído ou aquela sentimentalidade que vem com aquele presente de uma pessoa querida. Sim, porque objetos trazem muito mais do que a forma física.

Algumas pessoas dão nomes a seres inanimados mais íntimos, como o bluesman B.B. King que tratava sua guitarra por Lucille (aliás, mesmo nome que o vilão Negan deu a seu bastão enrolado com arame farpado em The Walking Dead). Cynthia Rylant escreveu um belo livro sobre isso – A Velhinha que Dava Nome às Coisas – melancólico o suficiente para extrapolar o universo infantil ao qual foi destinado.

Discos e livros, especialmente, têm a mediúnica função dos cavalos na umbanda e carregam emoções intransferíveis e inexplicáveis, que transcendem a forma física e se arraigam à alma. Como dispensar um disco que serviu de trilha-sonora para um momento marcante? Ou um livro ganho daquela namoradinha especial?

Melhor sentar e apurar os ouvidos. Coisas têm o que dizer.

Publicado no Correio Braziliense em 11 de julho de 2021

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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