O preço da liberdade

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O doutor Richard Kimble escapou de uma implacável e emocionante perseguição da polícia por 120 episódios. Acusado de matar a mulher, eletrizava as noites de quinta-feira da extinta TV Tupi, no seriado O Fugitivo, em preto e branco com direito a chuviscos e outras interferências na imagem. Agora, ao vivo e a cores, a realidade atropelou a ficção, e se o médico saiu inteiro da perseguição, Lázaro Barbosa ficou todo furado.

Fugitivos atiçam a cabeça da gente há tempos. Torcíamos para que o tenente Philip Gerard não conseguisse apanhar o Dr. Kimble (David Janssen, na foto), para garantir mais uma aventura mirabolante na semana seguinte e também porque sabíamos que ele era inocente. Agora, mesmo sabendo que Lázaro é autor de crimes bárbaros, havia quem torcesse por ele.

Não é de hoje que os fora-da-lei da vida real despertam simpatia. Gino Meneghetti fez furor em São Paulo e, como só roubava de aristocratas, ganhou o apelido de “bom ladrão”, pulando pelos telhados quatrocentões. Salafrários como Cara de Cavalo, Lúcio Flávio, Hosmany Ramos tiveram tratamento de celebridade, embora fossem temidos.

É uma clara inversão de valores, que racionalmente ninguém consegue explicar. Uma coisa é torcer por personagens da ficção, como o professor e seus cúmplices em Casa de Papel, também na TV. Outra bem diferente é vibrar com as peripécias de um indivíduo que aterrorizou comunidades – algumas a milhares de quilômetros de onde a ação se desenrolou, galvanizando a imaginação popular.

Billy the Kid, Al Capone e Bonnie e Clyde, foram facínoras que tiveram suas vidas romantizadas mesmo perpetrando crimes brutais, abrandados por narrativas que faziam da violência um estado de arte; a liberdade parecia justificar a barbárie.

Fugitivos provocam inveja; são símbolos de luta pela liberdade absoluta que todos sonhamos, especialmente aqueles que se sentem encurralados pela vida, ainda que seja preciso desafiar a Justiça para sair pelo mundo sem ter que prestar contas a ninguém.

É como diz a Joana, de Clarice Lispector: “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”.

Estranhamente, são menos admirados os escapistas de injustiças, caso de Frederick Douglass, que escreveu A Jornada de um Escravo Fugitivo, autobiografia de luta e perseguição. Ou calvinistas da França de Luís XIV, que tiveram que escapar da fúria dos católicos, conforme narrado no espetacular livro Os Fugitivos, de Conan Doyle.

Esse Lázaro, para muita gente, simbolizou um espírito livre; ainda que criminoso, caçado por centenas de policiais e mantendo tantas famílias da região prisioneira em grades de medo e desespero. O importante é que estava em fuga. E assim era visto de todo jeito.

A moça, assistindo as peripécias do sociopata pela TV, virou para o namorado e disse que mesmo bandido, assassino, ele teria salvado muitas vidas. Atônito, o rapaz nem precisou perguntar para que ela apresentasse sua tese.

“Está certo que é assassino cruel, mas nas cidades do Entorno ele fez o que ninguém mais conseguia: lockdown total. Ninguém saiu de casa, todos com medo, protegidos. Todos presos, ele solto; como o vírus”.

O preço da liberdade foram 30 balaços no corpo.

Publicado no Correio Braziliense em 4 de julho de 2021

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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