Canjebrina, a assassina

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O rapaz tem pinta de ser um brasileiro que sua para viver. O frio da noite nesta temporada de seca pedia casaco e até um pouco mais, mas ele ainda estava em mangas de camisa quando entrou no bar e, sem economizar na altura da voz – um amigo meu, preconceituoso, diz que pobre só fala gritando – pediu:

– Amigo, por favor, me dá aquela que matou o guarda.

Todos já tinham ouvido a expressão, mas talvez por falta de assunto nessa época em que a política anda dicotômica e o futebol vai à meia-boca, passou-se a especular de onde viria a expressão. É preciso lembrar que, naquela roda, pesquisa no celular é proibida. Preferimos as mentiras idôneas.

O rapaz era um destemido. Virou o copo que continha bem mais que uma dose regulamentar e tomou tudo de um gole só; ao final, estalou o dedo, fez uma careta e tomou folego. Não era um consumidor gurmê, não cheirou e sequer conferiu a perlage nas bordas, até porque a malvada é dessas que se encontra na prateleira de baixo dos mercados, baratinha.

Mas e o guarda? Apareceu todo tipo de teoria para explicar a frase. Algumas óbvias, como a de que se tratava de um soldado pinguço que bebeu até cair e botaram a culpa na pinga; outras mais criativas, alegando que se tratava de uma safra especial que era para ser guardada – mandou à guarda, explicou alguém. Houve também as impublicáveis, pesadas até para aquele ambiente libertino, quase insalubre.

Ninguém sabia, claro. Não é um dito popular, pois não encerra moral ou significado, e não quer dizer necessariamente que se trata de um líquido forte, ou mesmo de um veneno. Eis que, na semana seguinte, Marcão, bancário aposentado, com tempo para fazer pesquisa sobre as irrelevâncias da vida, trouxe uma resposta que, por falta de outra melhor, foi aceita. Em princípio.

Segundo ele encontrou no Google, o livro Inconfidências da Real Família no Brasil, de um certo Alberto Campos de Moraes, narra que D. João VI tinha uma criada chamada Canjebrina que, como se sabe, é sinônimo de uca e que teria matado um dos soldados da corte imperial. Daí começaram a dizer “a Canjebrina matou o guarda”, e a frase se popularizou.

Nem precisei ligar para o Renato Vivacqua ou para o coronel Athos Cardoso, oráculos confiáveis que sabem de quase tudo. O que o Google não disse é que Alberto Campos de Moraes é na verdade o escritor Mário Prata (que tem todos os cinco nomes na certidão) e o livro com a explicação nunca foi escrito.

Prata escreveu um outro livro com uma interpretação pessoal e humorística sobre ditos e frases populares, inventando teorias que explicassem a criação de sentenças como “mas será o Benedito?” (título da obra, aliás), “fazer uma vaquinha” e “cor de burro quando foge”. O autor nunca pretendeu disputar com Câmara Cascudo, que passou a vida pesquisando o folclore brasileiro.

A definição é só uma gaiatice, mas para o Google virou uma verdade.

Publicado no Correio Braziliense, em 23 de agosto de 2020

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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