Quando um bar fecha as portas a cidade morre um pouco. É nos bares que a comunidade pulsa, que os humores se apresentam e as paixões afloram. Há poucos lugares tão democráticos; com o fechamento de um bar o cidadão perde sua embaixada, seu púlpito, espaço de reivindicação, protesto, lamento, desabafo.
Como dizia o sábio Tetê Catalão, pode não mudar a situação, mas altera sua disposição. E assim foi o Feitiço Mineiro, cenário de grandes histórias, palco de inefáveis personagens, dramas comezinhos e até decisões que mexeram com a vida da cidade, que recentemente fechou definitivamente o expediente.
Na capital que substituiu as esquinas por tesourinhas, os bares propõem um pacto de encruzilhada, onde o capeta não entra – ou pelo menos nem sempre. São ambientes que humanizam o asfalto e o concreto, fazem contraponto à imensidão de jardins que abraçam a cidade e – importante – formam o ambiente de descompressão entre trabalho e lar.
O bar é um refúgio, muitas vezes uma casamata contra os bombardeios do dia a dia, sempre um campo neutro, onde até a solidão – esse sentimento tão vilipendiado – é respeitada. E, ao contrário do que se imagina, muitos relacionamentos foram salvos pelos bares, que entregam maridos mais leves, ledos e fagueiros às esposas.
Mas tem bar que vai muito além dessas funções. O fechamento do Feitiço Mineiro carrega um pedaço significativo da história de Brasília. Não da capital das autoridades de terno, gravata e abotoaduras, embora muitas delas tenham passado por suas mesas, mas da urbe da gente comum, de uma plebe nada ignara que faz a vida girar no compasso cordial – não o afável, mas aquele que vem direto do coração.
Foram 31 anos de convivência, a maioria deles sob a direção de Jorge Ferreira, que conjurou o feitiço à sua imagem e semelhança: aberto, desbocado, apaixonado. Era um espaço de cultura, descontração ou debate – “aqui pode discutir tudo, até política e religião”, dizia o fundador que, insatisfeito com limitações, ampliou os debates com uma revista, Tira Prosa, de vida breve, mas marcante.
O Feitiço sempre serviu um bom chope, uísque honesto, petiscos valorosos, mas o que era realmente importante não vinha do balcão. O bar abrigou uma fauna rica, misto de burocratas, poetas, intelectuais e vagabundos que mostrava a diversidade de pensamento e atitude. Ali, muitos cotovelos receberam os primeiros socorros, muitos encontros proibidos aconteceram, incontáveis amizades – e alguma altercação – foram engendradas.
Livros e discos foram lançados. Era um porto seguro para músicos da cidade, que alternavam o exíguo espaço do palco com artistas já consagrados, ampliando a percepção cultural na redução – geograficamente falando – representada pelo gentílico do nome, até porque, na verdade, o feitiço sempre foi brasiliense.
O bar virou canção. O compositor mineiro Zebeto Corrêa, parceiro de Jorge Ferreira em um punhado de músicas, pegou emprestadas as palavras de Caio Junqueira Maciel no poema O Feitiço Virou contra o Brasileiro e fez uma cançoneta em homenagem ao palco de tantas vozes e que ele registrou no Facebook. Vale a pena ouvir:
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Publicado no Correio Braziliense em 21 de janeiro de 2021
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