A cidade que nasceu no bar

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Nem todo mundo sabe, mas Brasília – essa mesmo que completa 61 anos de vida – nasceu num botequim. Não podia dar errado. Ainda era madrugada no dia 19 de abril de 1956 quando o fundador assinou a Carta de Anápolis e a mensagem ao Congresso Nacional, apresentando o projeto de Lei para a mudança da capital.

O cenário foi um boteco que ficava ao lado do aeroporto de Anápolis, onde o presidente Juscelino Kubitschek se refestelava com uma média com pão e manteiga. Na mensagem, JK citou os ideais da Inconfidência Mineira como motivação para o ato; a carta é, na verdade, um bilhete improvisado com garranchos, quem sabe escrita em papel de pão.

Depois da garatuja veio o X de Lucio Costa, mas antes disso, em 2 de outubro de 1956, JK pisou pela primeira vez no barro brasiliense e tomou café na fazenda do Coronel Dilermando, no Gama. 39 dias depois ele estava de volta ao cerrado para inaugurar o Palácio de Tábuas, que ficaria conhecido como Catetinho, para emular a sede do governo federal no Rio de Janeiro.

A partir daí o Brasil começou a olhar e caminhar para dentro, a entender que existe vida longe do Oceano Atlântico, e que havia riquezas a explorar além das esmeraldas que atraiam os bandeirantes e do ouro das Minas Gerais. Brasília – que dizem ter nascido de um sonho santo – se transformou na realidade de uma nação.

Aos olhos de hoje, o início parecia um pesadelo, mas eram tempos de paixão. São vários os relatos mostrando que as esposas dos engenheiros e arquitetos tinham ciúmes do fascínio que a nova cidade despertava nos maridos.

Elvira Barney registrou as impressões de 91 senhoras no livro Mulheres Pioneiras de Brasília; algumas se lembram da primeira noção de civilização que chegou na cidade cheia de barracos de madeira: as bicas comunitárias onde buscavam água limpa.

Sem energia elétrica, as residências eram iluminadas com lampiões a gás ou querosene, dependendo das condições financeiras de cada família. Um dos primeiros programas de lazer era ver o nível da água do Lago Paranoá subindo – conta-se até que quando se espalhou a notícia houve uma grande correria porque muita gente enterrava o dinheiro em buracos abertos no chão (na foto, o local onde hoje está o lago).

Nos primeiros anos também circulava um caminhão que estacionava e chamava as pessoas com um toque de sino; era um cinema ambulante. Montava-se uma tela, e o filme era exibido. E a música estava, literalmente, no ar. Carlos Senna criou um sistema de alto-falante na Cidade Livre (hoje Núcleo Bandeirante) onde canções dividiam o tempo com os primeiros reclames das lojas e alguns recados.

As mulheres iam para as festas com um guarda-pó e com um lenço cobrindo todo o rosto para proteger a maquiagem, tanta era a poeira. Só se revelavam quando chegavam ao local da furrupa.

Hoje, Brasília está limpa e cheirosa, com gramados imensos, árvores frondosas e passarinhos de todas as espécies. E, nessa época, verdinha. É um raro caso de quem fica mais bonita com a passagem dos anos.

Publicado no Correio Braziliense em 18 de abril de 2021

Paulo Pestana

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Paulo Pestana

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