O amor romântico acabou? O que vai substituí-lo? O individualismo trouxe uma intolerância aos sacrifícios, mas como isso afeta os relacionamentos? Novas tecnologias, novas formas de organização social, novos modos de encarar as relações, tudo isso interfere na maneira como as pessoas encaram amor e sexo e é sobre isso que a psicanalista Regina Navarro Lins fala em Novas formas de amar.
Dividido em Amor romântico, Vida a dois e Outros caminhos do amor, o livro traz uma compilação de ideias que Regina começou a desenvolver quando publicou A cama na varanda, em 1997. Depoimentos, citações e, sobretudo, a observação e a experiência acumuladas durante 45 anos de consultório guiaram a psicanalista nessa reflexão sobre os rumos dos relacionamentos amorosos no século 21.
Regina defende que a exclusividade e a idealização do amor romântico nem sempre são fontes de felicidade e podem trazer sofrimento e destruir as relações. “Não tenho dúvida de que as pessoas sofrem demais com seus desejos, fantasias, medos e culpas. E sofrem desnecessariamente. Estamos vivendo um momento muito especial em que os padrões de comportamento não estão dando mais respostas satisfatórias e está se abrindo um espaço para novas formas de pensar e viver o amor. As pessoas precisam falar disso, entender o que desejam para modificar a própria vida”, acredita.
A crítica à monogamia e às formas tradicionais de relacionamento já renderam ameaças e ataques à psicanalista, mas ela lembra que essas reações são normais. “Não me importo, mesmo porque apesar de inúmeros ataques, maiores são os apoios e agradecimentos que recebo. Por tudo isso, acredito que todos devem refletir sobre as crenças e valores aprendidos para se livrar do moralismo e dos preconceitos para viver melhor. Mas é necessário coragem”, explica. Autora de 12 livros e ex-professora de psicologia do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, Regina também é consultora do programa Amor&Sexo e mantém um blog sobre relacionamentos. Abaixo, ela fala sobre o livro e a crença de que, no futuro, as relações monogâmicas serão cada vez mais raras.
Novas formas de amar
De Regina Navarro. Planeta, 272 páginas. R$ 44,90
Entrevista: Regina Navarro Lins
O que mais mudou nos relacionamentos nos últimos 20 anos?
Em cada período da História o amor se apresenta de uma forma. Atendo no consultório há 45 anos. De uns cinco anos para cá passei a receber casais trazendo novos conflitos, que ocorrem porque uma das partes propõe a abertura da relação — partir para um relacionamento não monogâmico — ou uma nova prática sexual. A outra parte se desespera com essa possibilidade, se sente não amada. Acredito que no futuro poucos vão querer se fechar numa relação a dois, e mais gente vai optar por relações múltiplas, com vários parceiros ao mesmo tempo.
É o fim do romantismo? E o que isso representa para a sociedade contemporânea?
O amor romântico, felizmente, está dando sinais de sair de cena. Mas a minha crítica não é ao fato de se mandar flores ou jantar à luz de velas. O que critico são as características e os ideais desse tipo de amor: você idealiza a pessoa amada e projeta nela tudo o que gostaria que ela fosse. Atribui a ela características de personalidade que na verdade não possui. Não se relaciona com a pessoa real, mas com a inventada de acordo com as próprias necessidades. Por isso, esse tipo de amor não resiste à convivência diária da vida a dois.
Por quê?
Porque com a excessiva intimidade fica impossível manter a idealização. Começa-se a enxergar o parceiro como ele é, com aspectos que nos desagradam. O desencanto é inevitável trazendo a sensação de ter sido enganado. Quando percebemos que o outro é um ser humano e não a personificação de nossas fantasias, nos ressentimos e geralmente o culpamos. Além disso, o amor romântico propõe a fusão, os dois se transformarem num só. Entre suas expectativas, que não se cumprem, estão a de que o amado terá todas as suas necessidades atendidas pelo outro, que nada mais vai lhe faltar. E a mais mentirosa de todas: a crença de que quem ama não sente tesão por mais ninguém.
Como o cinema e Hollywood ajudaram a construir esse mito?
Hollywood e os anúncios no pós-guerra alimentavam a fantasia de uma esposa sempre bela, muito bem-vestida e penteada, e tranquila. A esposa e o marido perfeitos, que encontraram a “pessoa certa”, a “alma gêmea, e se casaram por amor. As fantasias da tela tornam-se as fantasias de milhares de espectadores. O comportamento de astros e estrelas na tela afeta a vida privada do público.
Existe “o homem/mulher da minha vida”? Ou isso é uma invenção? Criada para quê?
É uma das expectativas equivocadas do amor romântico. Traz a ideia de que entre mais de sete bilhões de habitantes no planeta existe uma que é “o homem ou a mulher da sua vida”. O resultado dessas crenças na vida a dois é que, com frequência, um imagina o outro como na realidade ele não é, e espera dele coisas que ele não pode dar. As expectativas e ideais do amor romântico são passados como a única forma de amor, e as pessoas aprendem a sonhar e a buscar um dia viver tal encantamento. Entretanto, como nenhuma delas corresponde à realidade, em pouco tempo de relação elas se decepcionam e se frustram.
“É o que procuram as sociedades modernas: pôr a lei a serviço das paixões, em vez de enquadrar as paixões na lei”: o quão distante ou próximo estamos disso no Brasil?
Durante um longo período todos tiveram que se enquadrar em modelos para ter aceitação social. Muitos ainda acreditam que sem uma relação amorosa do tipo romântica — fixa, exclusiva e duradoura —, não se pode ter uma vida satisfatória. Esse modelo imposto de felicidade, além de não corresponder à vida real, gera sofrimento por induzir as pessoas à busca incessante do parceiro idealizado. Ocorre que estamos no meio de um processo de profunda mudança das mentalidades. A busca da individualidade caracteriza a época em que vivemos. A grande viagem do ser humano é para dentro de si mesmo. Cada um quer saber quais são suas possibilidades na vida, desenvolver seu potencial. O amor romântico propõe o oposto disso; prega que os dois se transformam num só, havendo complementação total entre eles. Preservar a própria individualidade começa a ser fundamental, e a ideia básica de fusão do amor romântico deixa de ser atraente porque vai no caminho inverso aos anseios contemporâneos. O sociólogo inglês Anthony Giddens chama de “transformação da intimidade” o fato de milhares de homens e mulheres ocidentais estarem tomando consciência da importância de desaprender e reaprender a amar. Penso que essas mudanças ocorrem no Brasil e em todos os países do Ocidente.
O Brasil ainda é um país muito conservador?
A mudança das mentalidades não ocorre em todos ao mesmo tempo e demora algumas vezes mais de cem anos para se concretizar. Provavelmente estamos em pleno processo de transformação. Nessa transição encontramos comportamentos díspares no mesmo grupo social — alguns que já se libertaram dos valores tradicionais e outros que, apesar da insatisfação, se agarram ao que é conhecido, afinal, o novo assusta, o desconhecido gera insegurança. Mas penso que o Brasil, em alguns aspectos, é mais conservador do que outros países ocidentais.
Você cita Roberto Freire: “descobriram ser o real bem mais belo e fascinante que as fantasia, porque o real depende apenas de nós mesmos, de nossa criatividade e da liberdade conquistada”. Mas o quão o mundo está realmente preparado para isso?
Imagina se pudéssemos fazer uma visita aos anos 1950/1960, e chegando lá disséssemos que algumas décadas depois as moças não mais se casariam virgens. Iriam nos chamar de loucos; diriam que a sociedade não estava preparada pra isso. Afinal, a virgindade era um valor. O mesmo ocorreria se disséssemos que dentro de algumas décadas a separação de um casal seria comum. Naquela época, a separação de um casal era uma tragédia familiar; muitas escolas não aceitavam filhos de pais separados. Isso não mudou?
O que significa amar criativamente e livremente, dois termos que você emprega com frequência no livro?
Significa amar totalmente fora dos modelos impostos, com espontaneidade. Acredito que o grande conflito hoje se situe entre o desejo de simbiose — ficar fechado numa relação a dois — e o desejo de liberdade. E parece que este último começa a dar sinais que dentro de algum tempo irá predominar.
Você diz que “de uns tempos para cá vem diminuindo muito a disposição das pessoas para sacrifícios”. Por quê?
Durante muito tempo a ordem, para se viver bem no casamento, foi “ceder”. Mas se você cede em aspectos que são fundamentais para você, é um sacrifício. E o preço cobrado do outro pode ser tão alto, mesmo que inconscientemente, que chegue ao ponto de inviabilizar a própria relação. A tendência hoje é de a maioria buscar desenvolver ao máximo suas possibilidades e sua individualidade, evitando manter relações insatisfatórias. Afinal, há muito a ser vivido. O movimento de emancipação feminina e a liberação sexual dos anos 1960 trouxeram mudanças profundas na expectativa de permanência de uma relação conjugal. Surgiram muitas opções de lazer, de desenvolver interesses vários, de conhecer outras pessoas e outros lugares. Sem falar numa maior permissividade social para novas experimentações, nunca ousadas anteriormente.
Você fala também em permissividade social. O que isso significa? Houve uma mudança de paradigma?
Sim. Após a pílula, que dissociou o sexo da procriação e o aliou ao prazer, muitos jovens passaram a contestar os costumes e os padrões da sociedade. Estamos vivendo meio século depois do marcante ano de 1968, uma década de transição, em que se começou a pensar de outra forma. Pela primeira vez na história da humanidade, uma quantidade enorme de jovens informalmente se organizaram em todo o Ocidente. Os movimentos de contracultura — Movimento Hippie, Movimento Feminista, Movimento Gay, constituem o início de um modelo ocidental radicalmente diferente do passado. Eles alteraram as correlações de força na sociedade, desfizeram preconceitos e criaram novos paradigmas culturais que vieram para ficar, como o modo de vestir, de fazer arte e de se relacionar.
Essa permissividade que também nos autoriza a sair de um relacionamento com certa facilidade quando queremos não seria também símbolo da maneira como nos tornamos consumistas e imediatistas? O que isso diz sobre o prazer e o desejo?
O convívio satisfatório com o outro depende do que se espera da vida a dois. Algumas décadas atrás, uma mulher se considerava feliz no casamento se seu marido fosse provedor e respeitador. Para o homem, a boa esposa seria aquela que cuidasse bem da casa e dos filhos. A partir da entrada do amor no casamento, por volta de 1940, os anseios passaram a ser bem diferentes e as expectativas em relação à vida a dois tornaram-se muito mais difíceis de serem satisfeitas: realização afetiva e prazer sexual. As pessoas escolhem seus parceiros por amor e esperam que esse amor e o desejo sexual que o acompanha sejam recíprocos e para a vida toda. Entretanto, na realidade, não é isso o que acontece. Após fazer muitas concessões para manter a fantasia do par amoroso idealizado, o casal acaba se separando.
Como fica o casamento nesse cenário?
Acredito que um casamento pode ser ótimo. Mas para isso as pessoas precisam reformular as expectativas que alimentam a respeito da vida a dois, como, por exemplo, a ideia de que os dois vão se transformar num só; a crença de que um terá todas as suas necessidades atendidas pelo outro; não poder ter nenhum interesse em que o amado não faça parte; o controle de qualquer aspecto da vida do outro, inclusive do sexual. Além disso é fundamental que haja respeito total ao outro, ao seu jeito de pensar e de ser e às suas escolhas; liberdade de ir e vir, ter amigos em separado e programas independentes. Caso contrário, a maioria das relações, com o tempo, se tornam sufocantes.
De todas as “novas formas de amar”, qual você acha mais revolucionária?
Todas que não se baseiam na exclusividade sexual de um casal. No que diz respeito ao sexo o mais revolucionário me parece ser a massagem tântrica. Você paga a consulta e o (a) profissional, que não se envolve fisicamente com você, coloca luvas e te faz ter vários orgasmos intensos e consecutivos.