MAIS UMA
Trapalhada do Peninha
(verbo manter: futuro do subjuntivo)
O Peninha deu vexame. Não o Peninha do Walt Disney. Esse dá vexame todos os dias. A trapalhada é sua marca registrada.
Quem diria que o nome contagia? Pois nosso administrador do Plano Piloto pegou a confusão mental do primo do Mickey Mouse.
Em entrevista à TV, disse sério: “Se ele manter a oficina aqui, não pode receber outra lá”.
Cala a boca, Magda. “Não é por acaso”, dizem os árabes”, que nascemos com dois olhos, dois ouvidos, duas narinas e … uma boca.” É para ter mais cuidado no falar.
O verbo manter é derivado de ter. Conjuga-se como ele. Ninguém diz “se ele ter a oficina aqui, não pode receber outra lá”. O que se diz é “se ele tiver”. Logo, se ele mantiver.
O castigo de Deus
A terra tinha uma só língua e um só modo de falar. Ninguém precisava estudar inglês, francês, árabe ou alemão. Todos se entendiam.
“Que mundo monótono”, disseram os homens. “Vamos agitar. Construir uma torre que nos leve até o céu. Lá as coisas devem ser mais animadas.”
O Senhor, que de bobo não tem nada, veio ver a obra. Irou-se. “Os homens pensam que é fácil chegar ao céu? Enganam-se. Os caminhos são outros. Os filhos de Adão vão ver.”
O castigo veio a galope. Deus criou mais de três mil línguas. Os pedreiros de Babel não se entenderam mais. A torre ficou ali, esqueleto inacabado. Os homens se dispersaram.
“O estilo é a cara.”
Monteiro Lobato
Cada língua ganhou punição à parte. O chinês ficou com os mais de 23 mil ideogramas (aqueles desenhozinhos que os alunos estudiosos levam 12 anos para decorar). O inglês, com a escrita totalmente diferente da pronúncia. O francês, com a praga dos acentos. Ninguém sabe colocá-los. O alemão, com as palavras coladas, tão compridas quanto a cobra que tentou Eva no paraíso.
E o português? Também levou. Ganhou o hífen. Deus pegou um montão de hifens na mão direita, um montão de palavras na esquerda. Jogou tudo para o alto. O resultado? A confusão que todos conhecem. Algumas palavras se ligaram com hífen (anti-social), outras não
(antiimperialismo). Por quê? É o castigo de Deus.
Na corrida do pega-hífen-não-pega-hífen, alguns elementos nem chegaram perto do sinalzinho. Eles nunca, nunca mesmo, se usam com hífen. Um deles é o tele. Aquele que aparece em televisão para dar a idéia de “de longe”. Daí telefone (voz de longe), televisão (imagem de longe), telegrama (mensagem escrita transmitida de longe).
Nesta era de compras pelo telefone, a confusão com o tele é geral. Ora a palavra aparece com o tracinho, ora sem. Não acredite nos seus olhos. Tele nunca aceita hífen: telecimento, telepizza, teletáxi, telenovela.
Nesse caos divino, há uma lei. As palavras escritas com tele mantêm a pronúncia e o acento originais. Por isso, diante do s e do r, é necessário respeitar a pronúncia: telesserviço, telessinalização, telessonda, telerradar, telerreserva, telerremédio. Assim, com dois ss e dois rr. Por quê? O s entre duas vogais soa z (casa, pesquisa, pesadelo). O r fica fraquinho como em caro.
Por causa dessa lei fonética, o Telerenavam, serviço
introduzido pelo Detran, deveria estar escrito com dois rr. Vem de Renavam (Registro Nacional de Veículos Automotores).
E a telesena? Deixou de dobrar o s. A pronúncia virou telezena. Daí o desencontro. A gente pensa na telessena. Joga na telezena.
Resultado: só ganha na sorte.
CURTAS
Maxi, mini, micro
(hífen: maxi, mini, micro)
O que esses serezinhos têm em comum? Três pontos:
• indicam tamanho
• nunca se usam com hífen: maxissaia, miniempresa, microssatélite.
• são atrevidos. Às vezes aparecem sozinhos. Funcionam como substantivos ou adjetivos. Aí, cuidado. Eles seguem as regras de acentuação da língua. Míni e máxi são paroxítonas terminadas em i. Levam acento. Iguaizinhos a táxi e júri: “Nem máxi nem míni”, disse o ministro. “O real não será desvalorizado”.
Juntos para sempre
(hífen: video, radio)
“Como escrever videorrevista e radiorrelógio?”, pergunta o Lázaro Eustáquio. Assim, coladinhos.
Uma diquinha: os elementos video- e radio- sofrem de alergia. Não suportam hífen. Nem sob tortura: videomania, videocassete, videolocadora; radioterapia, radiorreceptor, radiossonda, radioatividade, radioemissora, radiopatrulha.
O homem que sabia demais
Quem matou PC? Senhoras e senhores, façam suas apostas. Homicídio seguido de suicídio? Pode ser. Suzana matou PC e se matou. Duplo homicídio? Talvez. Alguém matou PC e a namorada. Homicídio seguido de homicídio? É possível. Suzana matou PC e alguém a matou.
As possibilidades não acabam aí. “PC se suicidou e, depois, matou Suzana”, garante a Internet. “Eu matei PC”, confessou Arnaldo Jabor. “Foi o Chico Anísio”, acusou o Rubens, do Correio Braziliense, “para PC não melar a história da Zélia” (aquela do primo generoso). A Folha não acreditou: “PC morreu de gripe”, garantiu.
Mentira. PC morreu de susto. Não foi para menos. Ele ouviu. Com os próprios ouvidos. Aqueles que a terra haveria de comer.
“Uma história se conta, não se explica.”
Jorge Amado
Suzana dizia ao telefone: “Eu queria dizer que tão pouco tempo, um dia só, um momento para lhe conhecer… “
“O quê?”, indignou-se o tesoureiro. A alagoana não sabia a regência do verbo conhecer? Desencantado, vestiu o pijama de seda azul. Deitou-se. Deu um suspiiiiiiiro. Bateu asas e voou.
PC estava coberto de razão. Lhe conhecer? Não mesmo. Lhe é objeto indireto. O verbo conhecer é transitivo direto. Pede o pronome o.
Como distinguir o verbo transitivo direto do indireto?
Simples. Basta aplicar a fórmula que a gente aprende na escola. Vamos relembrá-la.
O verbo da frase “Paulo César matou Suzana” é transitivo direto ou indireto?
Pegue o verbo (matar) e monte a fórmula: quem mata mata alguém. Entre o mata e o alguém, não aparece preposição. O verbo se liga diretamente ao complemento. Sem intermediários. É, pois, transitivo direto. Suzana, o objeto direto. Substituindo Suzana pelo pronome, temos: Paulo César a matou.
É o caso do conhecer. Quem conhece conhece alguém. PC conheceu Suzana na prisão (PC a conheceu). Preciso de um momento para conhecer você (…para o conhecer). Espero um dia conhecer você (espero um dia conhecê-lo).
E o lhe? É objeto indireto. Só se usa como complemento do verbo transitivo indireto. Veja:
Obedeço a meu chefe imediato. Quem obedece obedece a alguém. Entre o verbo (obedece) e o complemento (chefe) existe a preposição a. O verbo é transitivo indireto. Chefe é o objeto indireto. Logo: obedeço-lhe.
Dei o revólver ao policial. Quem dá dá alguma coisa (obj. direto) a alguém (obj. ind.). Substituindo o objeto direto: Dei-o ao policial. O indireto: Dei-lhe o revólver.
O Nordeste tem uma característica. Transforma alguns verbos transitivos diretos (ver, amar, cumprimentar, namorar) em indiretos. Foi o que Suzana fez. Embarcou na canoa furada.
Moral da história: PC morreu porque estudou regência verbal. Sabia demais.
MAIS UMA
Implicar implica e
complica
(regência: implicar)
O verbo implicar tem três empregos. Em dois, ninguém tem dúvida. Na acepção de ter implicância, pede a preposição com: O diretor implicou com ele. Na de comprometer, envolver, é vez do em: A secretária implicou o chefe no escândalo.
A dúvida surge no significado de produzir como conseqüência. Aí, implicar implica e complica. O verbo parece, mas não é. No sentido de acarretar conseqüências, o malandro é transitivo direto. Não suporta a preposição em: Autonomia também implica responsabilidade. Deflação implica recessão. Aumento da taxa de juros implica crescimento do déficit público.
Nem feminino nem plural.
É tudo igual
Volta e meia eles mudam de nome. Foram remediados. Viraram pobres. Passaram a miseráveis. Aí apareceram os carentes. Seguiram-se os despossuídos. Depois os descamisados vieram com força total. Ganharam inscrição em camiseta, discursos na televisão, juras de boas intenções (delas, o inferno está cheio. E Miami também).
Hoje os pobres estão em outra. É vez do sem. O desabrigado é sem-teto; o desamparado, sem-justiça; o agricultor que não tem onde plantar, sem-terra. A Globo adotou a novidade. Em Anjo de Mim, Lavínia é a sem-teto. Madalena,
“Escrevo para que meus amigos me amem ainda mais.”
Gabriel García Marquez
de Salsa e Merengue, a sem-justiça. Jacira, de O Rei do Gado, a sem-terra.
O sem virou histeria. O presidente do Sindicato dos Funcionários Públicos refere-se aos sem-governo. Os jornais citam os sem-partido. Xuxa fala nos sem-brinquedo. Millôr se lembra dos sem-vergonha. Elio Gaspari, dos sem-limite. Edir Macedo, dos sem-religião. O Sérgio Motta, das sem-homem. A liberação das tarifas bancárias deu origem aos sem-banco. O Plano Real logrou unanimidade – os sem-dinheiro.
A Veja delirou. Noticiou o paraíso dos sem-picanha. Isso mesmo. São as tentações da carne que fisgaram os poloneses Nowak e Piekarski. Os dois jogadores fazem furor no Atlético Paranaense. Sabe por quê? Eles se entopem de picanha todos os dias. “Na minha terra, dizem, éramos sem-picanha. Tanta carne junta só tínhamos visto no pasto. Mugindo.”
O sem deu filhotes. Há pouco houve em Brasília manifestação dos sem-terrinha. Está-se falando no movimento dos sem-celular, sem-microondas e sem-carro importado.
Enfim, a criatividade anda solta. Mas há um limite.
Os sem – todos eles – são sem mesmo. Sem feminino, sem masculino e sem plural.
Como não se confundir? Basta prestar atenção à companhia. O artigo, o adjetivo e o verbo não guardam segredo. Abrem o jogo:
Viviane Pasmanter vive a sem-teto da novela Anjo de Mim (o a diz que nos estamos referindo a nome feminino singular).
Sem-justiça de Salsa e Merengue vão lutar contra a mineradora Amarante Paes (o vão não deixa dúvida: o sujeito é plural).
Sem-teto busca resposta para o problema de moradia (o verbo informa que sem-teto é substantivo singular).
O desfile dos excluídos começa com os sem-teto na faixa das 18h e termina com os sem-terra na trama das oito (o artigo os é categórico: falamos de masculino plural).
Enfim, são os sem-flexão. Nem masculino, nem feminino, nem plural. É tudo igual.
MAIS UMA
Qual é a dos fora-da-lei?
(flexão: fora-da-lei)
A dúvida é da Cristina Quadra, da Embaixada da Austrália. Ela ficou intrigada. Outro dia, leu entrevista do ministro Lampreia, do Itamaraty. Ficou arrepiada: “Foras-da-lei, como Sadam Hussein, adorariam o fim da ONU”, dizia o texto.
“Na minha cabeça”, escreve ela, “a expressão lembra o imexível do Magri. É invariável. Estou errada?”
Claro que não. Fora-da-lei não tem feminino, nem masculino, nem singular, nem plural: o fora-da-lei, os fora-da-lei, a fora-da-lei, as fora-da-lei, indivíduos fora-da-lei, mulheres fora-da-lei.
A frase teria respeitado os ossos do barão do Rio Branco se tivesse sido escrita assim: Fora-da-lei, como Sadam Hussein, adoraria o fim da ONU.
Macaco velho não mete a mão em cumbuca
Antônio Carlos Magalhães, ACM para os íntimos e Toninho Malvadeza para os inimigos, telefona para Fernando Henrique Cardoso, o FHC: “Se o Banco Central interv…”
Engole em seco. “Intervir? Intervier?” Melhor não arriscar. Lembra-se de velha piada que muitos juram não ser chiste, mas fato registrado nos anais da ditadura.
Costa e Silva, o mandachuva de plantão, pede à secretária que marque uma reunião para sexta-feira. “Sexta-feira se escreve com x ou s?”, pergunta ela. Como saber? Por acaso ele
“O português é uma. língua muito difícil. Tanto que calça é uma
coisa que se bota, e bota é uma coisa. que se calça.”
Barão de Itararé
era dicionário? Melhor pegar um atalho: “Transfira-a para sábado”, ordena.
Foi o que nosso velho senador fez. “O diabo não é perigoso por ser diabo, mas por ser experiente”, pensou matreiro. Refez a frase: “Se o Banco Central decretar intervenção no Econômico, será uma agressão ao Nordeste e ao povo baiano”.
Safou-se. Mas a dúvida ficou. Correu ao Aurélio. Ali estava.
Intervir conjuga-se como o verbo vir, de quem é filho obediente.
O presente é moleza. Eu venho (intervenho), ele vem (intervém), nós vimos (intervimos), eles vêm (intervêm).
A única diferença é o acento. Vem termina em em. Mas só tem uma sílaba. Por isso não recebe acento. É o caso de bem, cem, tem. Mas intervém tem mais de uma sílaba. É oxítona (a sílaba tônica é a última). Encaixa-se na regra do também, ninguém, porém, armazém.
E o passado? O pretérito perfeito é uma verdadeira armadilha. Na hora dos discursos, os deputados caem como patos. Um vexame atrás do outro.
Esquecem-se de que intervir é da família de vir. Ambos se conjugam do mesmo jeitinho, sem tirar nem pôr: eu vim (intervim), ele veio (interveio), nós viemos (interviemos), eles vieram (intervieram).
E a frase que ACM estava dizendo a Fernando Henrique? “Se o Banco Central interv…” Como fica? A gramática explica: o futuro do subjuntivo se forma da 3a pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo menos o -am final: eles vier(am). Logo: se eu intervier, se ele intervier, se nós interviermos, se eles intervierem.
Se a dúvida não o tivesse assaltado, teria dito: “Se o Banco Central intervir no Econômico, será uma agressão ao povo baiano”.
Satisfeito, o velho Malvadeza liga a televisão. A primeira frase que ouve: “Banco Central interveio no Econômico”.
MAIS UMA
Nobel
(pronúncia: Nobel, ibero)
Era noitão. A gente estava lá, diante da TV, naquele vai-não-vai-pra-cama. Hermano Hening, diretamente dos States, apresentava o jornal do SBT. De repente, um susto deste tamanho. O homem golpeou duplamente a pronúncia. Tropeçou, primeiro, no Nobel. Depois, no ibero.
Nobel é oxítona. A sílaba tônica cai no el. Pronuncia-se como papel ou Mabel.
Ibero entrou no ar com o encontro ibero-americano. Esse adjetivo sofisticado é paroxítono. A sílaba be fala mais alto que as outras.
Dizer ‘íbero’? Nem pensar. Pega mal como jogar papel na rua, arrotar à mesa, dirigir acima da velocidade permitida.
Rosa que te quero cor-de-rosa
O rosa está na moda. Não por causa do verão. Mas de misteriosa pasta desenterrada das gavetas do Banco Central. Ninguém sabe se é rosa-bebê ou rosa-choque. Talvez rosa-maravilha ou rosa-rei.
Uma coisa é certa. Tem muito poder. Abalou os alicerces da República. Há quem atribua a culpa ao Zé do Caixão. Desde que visitaram o presidente, aquelas unhas (que não estavam pintadas de rosa) surrupiaram o sossego da Esplanada dos Ministérios e arredores.
Primeiro foram os grampos. Saíram da cabeça da vovó e ganharam o Palácio do Planalto. Puseram a nu intimidades verbais e “influenciais” do governo. Até d. Ruth entrou no tiroteio.
“Não há livros morais e livros imorais. Há livros bem escritos e livros mal-escritos.”
Oscar Wilde
Agora é a vez do rosa. Inocente, sempre se identificou com o feminino. Menina? Cor-de-rosa. Menino? Azul. No chá das cinco, coloria as discussões sociais. Algumas mães diziam que a cor combinava melhor com as baianas. Outras discordavam. Achavam que caía como luva nas pernambucanas. E as paulistas? O rosa destacava-lhes a pele clara e os olhos expressivos.
Das casas de chá, o rosa chegou às manchetes. O Correio Braziliense abriu-lhe espaço. A pasta apareceu lá, na primeira página, a mais nobre do jornal. Para quê? Para que o leitor a colorisse (com um I só). De rosa, claro.
Vidas sofreram mudanças. O dinâmico Serjão estava reunido com empresários paulistas quando ouviu falar da tal pasta rosa. “Aí tem coisa”, pensou. De susto, criou a palavra “fazejamento”. Corre risco de ir para o Aurélio e para a Academia Brasileira de Letras.
ACM teve destino diferente. Nervoso, chamou os diretores do Banco Central de marginais. Vai para a Justiça.
Ninguém sabe o destino da pasta. Mas o do rosa se adivinha. Dará vez a cores mais fortes: laranja, lilás, cinza, grafite, preto. Marisa Monte já chegou lá. Deu o nome de Rosa-Carvão ao show que trará a Brasília.
A vida é cheia de mistérios. E de surpresas. Você (ou eles) pode tropeçar na pasta. Mas, por favor, não capote nas cores.
Os adjetivos compostos que indicam cor são invariáveis. Não têm plural nem singular, masculino ou feminino: pasta cor-de-rosa, pastas cor-de-rosa; livro cor-de-rosa, livros cor-de-rosa.
Preguiçosa, a língua às vezes omite o cor-de. Mas ele não morre. Fica escondido. E conta como se existisse: pastas (cor-de) rosa, livros (cor-de) cinza, vestidos (cor-de) palha, sedas (cor-de) lilás, blusas (cor-de) telha, capa (cor-de) cereja, saias (cor-de) abóbora, sapatos (cor-de) vinho, bolsa e luvas (cor-
de) pérola, cintos (cor-de) castor.
Não pense que cor é sempre solteira. De vez em quando ela arranja namorado. Aí temos o casal formado de cor + substantivo: vestido amarelo-canário, uniforme azul-oliva, olhos verde-mar, vestido verde-garrafa, camisas verde-malve, uniformes azul-ferrete, lenços vermelho-sangue, bolsas amarelo-ouro.
Reparou? Solteiro ou casado, o adjetivo composto que indica cor não se flexiona. Cai na vala comum. A mesma do cor-de-rosa.
MAIS UMA
TV em cores?
TV a cores?
(em cores)
Você diz transmissão em cores? Revista em cores? Pôster em cores? Filme em tecnicolor? Por que discriminar a tevê? Ela joga no mesmo time. A TV é em cores.
E a outra coitada, aquela da qual ninguém quer saber? É isso mesmo: tevê em preto e branco.
Faz e acontece
As palavras, como as pessoas, têm manias. Combinam. Brigam. Fazem exigências. Armam ciladas.
Um verbo cheio de caprichos é o acontecer. Elitista, tem poucos empregos. E quase nenhum amigo. Mas, por capricho do destino, os colunistas sociais o adotaram. A moda se espalhou como fogo morro acima ou água morro abaixo.
O pobre virou praga. Tudo acontece. Até pessoas: Ronaldinho está acontecendo na Seleção. O casamento acontece na catedral. O show acontece às 22h. E por aí vai.
Violentado, o verbo vira a cara. Esperneia. E se vinga. Deixa mal quem abusa dele. Diz que o atrevido sofre de pobreza de vocabulário.
“Só se escreve para provocar um amigo, conquistar uma mulher ou ganhar muito dinheiro.”
Ivan Lessa
Para não cair na boca do povo, só há uma saída. Empregá-lo na acepção de suceder de repente.
Acontecer dá sempre a idéia do inesperado, desconhecido: Caso acontecesse a explosão, muitas mortes poderiam ocorrer.
O verbinho de sangue azul sente-se muito bem com os pronomes indefinidos (tudo, nada, todos), demonstrativos (este, isto, esse, aquele) e o interrogativo que: Tudo acontece no feriado. Aquilo não aconteceu por acaso. O que aconteceu?
Não use acontecer no sentido de ser, haver, realizar-se, ocorrer, suceder, existir, verificar-se, dar-se, estar marcado para. Se você insistir, prepare-se. É briga certa. Melhor não entrar nessa. Busque saídas.
Uma delas é substituir o verbo: O show acontece (está marcado para) às 21h. O festival aconteceu (realizou-se) no ano passado. O crime não aconteceu (ocorreu). Acontecem (ocorrem) casos de prisão de inocentes durante as batidas policiais. O vestibular está previsto para acontecer em dezembro (previsto para dezembro). Não aconteceu (houve) o rigoroso inverno.
Outra é mudar a frase. A prisão aconteceu ontem. (A polícia prendeu o ladrão ontem.) O show dos Rolling Stones acontece no Morumbi. (Os Rolling Stones fazem show no Morumbi.) A divulgação do resultado acontece logo mais. (O resultado será divulgado logo mais.) O início da prova aconteceu às 8h. (A prova iniciou-se às 8h.)
MAIS UMA
Nos braços de Morfeu
(morfina: etimologia)
Morfeu vive no Olimpo. É deus do sono e dos sonhos. Daí a expressão “estar nos braços de Morfeu”, que significa estar dormindo. O nome dele vem do grego morfo-. Quer dizer “a forma”. Não por acaso. Chama-se assim porque tem uma missão: tomar a forma humana e aparecer aos homens durante os sonhos.
O deus cumpre a obrigação numa boa. É dono de grandes asas. Transporta-se com facilidade às extremidades da Terra. Sem ruídos. Com uma papoula, faz os mortais adormecerem.
De Morfeu originou-se a palavra morfina. Por duas razões. A primeira: o poder sedativo é feito de ópio, narcótico subtraído da papoula. A outra: além de aliviar as dores, a morfina faz dormir.
O verbo singular
O falante Germano Rigotto, vice-líder do governo na Câmara, dava entrevista ao Bom Dia, Brasil. Dia tenso, 15 de agosto. Preocupado em defender a intervenção no Econômico, o deputado declarou: “Acompanhamos todas as tentativas que houveram até aqui”.
Mais um atropelado pelo verbo haver. Baita trombada. Há muito, aliás, esse verbo singular vem causando estragos na fala e na escrita.
Que o diga a nossa Márcia Kubitschek. Ao assumir o governo do Distrito Federal, a então vice-governadora, muito à vontade diante das câmeras de televisão, nos brindou com este tropeço sorridente: “Nas últimas eleições, houveram poucos distúrbios em Brasília”. Os jornais não ficam atrás. No domingo,
“Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com o Dops.”
Graciliano Ramos
lemos: “Nós temos consciência da demanda da classe média por habitações que não haviam no mercado”.
Lá longe, no curso primário, nossos professores já diziam: “O verbo haver, no sentido de existir e ocorrer, é impessoal”. O que isso quer dizer?
A maioria dos verbos – comuns, rotineiros, sem charme – é pessoal. Conjuga-se em todas as pessoas (eu, tu, ele, nós, vós, eles). Veja, por exemplo, o laborioso trabalhar: eu trabalho, tu trabalhas, ele trabalha, nós trabalhamos, vós trabalhais, eles trabalham.
O verbo haver é diferente. Detesta fazer parte de rebanho. Quer ser especial. No sentido de ocorrer e existir, é impessoal, Não tem sujeito. Só se conjuga 3a pessoa do singular. Por isso se chama verbo singular.
É o caso dos nossos exemplos: Acompanhamos todas as tentativas que houve (existiram) até aqui. Houve (ocorreram) poucos distúrbios em Brasília. Nós temos consciência da demanda da classe média por habitações que não havia (existiam) no mercado.
Por que se faz tanta confusão com esse verbo? Muitos não prestaram atenção às palavras do professor. Ou não entenderam a lição. Até hoje, barbudos e carecas, pensam que o sofisticado haver é igual aos outros verbos. Esquecem-se que ele não tem sujeito.
Com medo de errar, imaginam que o objeto direto é o sujeito, sobretudo se o verbo estiver no passado. Quando se diz “houve poucos distúrbios”, distúrbios não é sujeito, mas objeto direto, ao contrário do que pensam os desavisados. O verbo haver é impessoal, lembre-se.
A impessoalidade é contagiosa. Os auxiliares do haver
também se tornam impessoais: Deve haver muitos distúrbios. Ia haver habitações no mercado. Pode haver leilões no próximo fim de semana.
Sempre que se vir tentado a flexionar o verbo haver, pense. No sentido de ocorrer e de existir, ele é invariável, irremediavelmente fiel à 3a pessoa. Por via das dúvidas, risque o houveram do seu vocabulário. Você nunca o usará.
MAIS UMA
Aparências
(anos sessenta)
A turma do chopinho se dividiu em dois grupos. De um lado, o time do s. De outro, do não-s. A taça seria na uma caixa de cerveja. A questão: anos sessenta ou anos sessentas?
Ganhou a turma do não. É que as aparências enganam. Há, aí, três palavrinhas escondidas, prontas pra enganar os distraídos. Daí o singular: anos (da década de) sessenta, anos (da década de) noventa.
De pincenês e pharmacia
A história tem dois lados. Um, velho como usar suíças e pincenês. Trata-se do emprego do há na contagem de tempo. O outro, igualmente idoso, é pouco conhecido. Joga no time dos que escrevem farmácia com ph. Trata-se do havia também na indicação de tempo.
Ambos têm dois pontos comuns. Um: indicam tempo passado. Outro: são substituíveis por fazer. Há vira faz. Havia rima com fazia.
Veja:
Morei na Europa há (faz) dois anos.
“Aprender várias línguas é assunto de um ou dois anos. Ser eloqüente na própria língua exige a metade da vida.”
Voltaire
Trabalhamos na IBM há (faz) muito tempo. Cheguei há (faz) pouco.
Moro em Brasília há (faz) pouco.
Na última sexta-feira, Tiana planejou passar o fim de semana com a irmã. As duas não se viam havia (fazia) alguns dias.
Maria mudou-se ontem. Morava ali havia (fazia) dois anos.
Ela não chegou. Ele estivera esperando havia (fazia) muito tempo.
Reparou? O segredo está no ponto final do tempo. Com o há, a contagem acaba no momento atual. Com o havia, antes.
Atenção. Não abuse.
O haver odeia o atrás. Não os use na mesma frase. Dá briga. Há seis anos atrás? Nem pensar. É pleonasmo. Escolha um ou outro: Acabei o curso há seis anos. Seis anos atrás acabei o curso.
E o tempo futuro? Esse é mais antigo que o rascunho da Bíblia. Só a preposição a tem vez: Daqui a dois anos acabo o curso. O avião chega daqui a pouco. A sete meses da eleição de outubro, o PMDB decidiu não ter candidato próprio.
Substituir a por faz? Nem pensar. Dá arrepios.