Obrigada por aguardar

Publicado em ÍNTEGRA

DESDE 1960 »

aricunha@dabr.com.br

com Circe Cunha e MAMFIL

Obrigada por aguardar

Só quem já tentou algum dia cancelar um simples chip da Claro e similares pode imaginar o quão surreal é a tarefa. A começar pelo script. Todas as alternativas de convencimento estão listadas. Vai perder os pontos, não há custo adicional em congelar a conta por três meses, é possível fazer uma conta partilhada e por aí vai. Impossível convencer os atendentes a cumprir uma simples e justa vontade da consumidora. Encerrar a conta. Romper o contrato conforme é previsto.

Os atendentes do call center são adestrados. Proibidos de usar o bom senso na conversa com o cliente, que é levado em mais uma tentativa de convencimento a permanecer como tal, sendo ignorado na sua singela vontade de acabar com uma relação consumerista. É levado a um mundo encantado do faz de contas, com ofertas maravilhosas e velocidades espetaculares.

Após aguardar longos minutos travando uma batalha vernacular, dialética para ser respeitado no pedido, tem início uma jornada fantástica. Nunca faça apenas uma ligação. Anote a ordem da chamada na primeira vez: 1 para isso, 2 para aquilo. Use diferentes aparelhos para ligar várias vezes. Anote o nome de todos os atendentes. Marque dia e hora para pedir a gravação na audiência. E aí prepare-se para tricotar, arrumar aquela pasta de documentos ou assistir a um filme enquanto cuida do cancelamento do maldito chip. Nunca cuide só disso. Faça qualquer coisa ao mesmo tempo.

Depois de não ter conseguido, por vias honestas, o cancelamento, há que se inventar uma razão imbatível como: “Meu marido está indo para os Estados Unidos trabalhar com o presidente Trump”. Alguns ainda esperneiam dizendo que o chip funciona perfeitamente nos EUA também. Só um pigarro basta para desmoronar a empreitada. Aguarda daqui, transfere a linha para lá, começam por conferir lentamente seus dados. Lembre-se: nunca seja atendido por uma pessoa só. Desligue o telefone e recomece o processo. Assim, seus dados vão se solidificando no sistema. E continua a via-crúcis. Primeira etapa vencida, razão do cancelamento gera o fim das alternativas do script.

A partir daí vem a segunda etapa: nome da mãe, endereço, CPF, data de nascimento. Nesse momento surgem dúvidas. Eles dizem que os dados estão divergentes e você pensa: mentir a idade para um call center? Com que finalidade? Desliga e liga novamente. Touché! O dado estava certo. É difícil, mas o fato de o operador acreditar que você é você mesmo é um indicador importante para apontar o tempo restante da empreitada. Afastadas todas as dúvidas de que você é mesmo o insolente que, em algum momento, ousou cancelar um serviço dessa magnífica empresa. Passa-se então para o nível seguinte. (Vale lembrar que os tribunais estão cheios de causas trabalhistas ganhas nas quais os empregados protestam por ser obrigados a mentir para os clientes e manter o lucro da empresa.)

Faz-se, então, mais um longo período de silêncio, como se a ligação tivesse caído. De cá parece não haver ninguém ouvindo. Mas há. A dica é relembrar o oratório Elias, de Mendelssohn. E cantar com a voz solta! Com vibrato, glissando e fortíssimo. Em poucos instantes o atendente volta. Não aguenta tanta erudição e agora quer resolver sem a espera.

Quando restabelece a comunicação, o atendente lhe adverte que o cancelamento desse serviço será prejudicial para você e que haverá perdas desnecessárias, pontos perdidos, créditos cancelados e outras possíveis benesses desativadas. Repete todo o script em uma voz de partir o coração. Um repetente de palavras que deixa o calor do lar para ir trabalhar em um lugar inóspito desses, onde ele está proibido de conversar, opinar, dar dicas, bater um papinho. É muito triste. Até tentaram colocar um salzinho na voz do robô que atende no SAC, mas tirar o ânima da voz de quem tem vida é desolador. Um acinte ao direito de personalidade.

Quando a ligação retorna, o atendente avisa com uma locução verbal desnecessária , tipo estarei transferindo seu pedido para o atendente dos cancelamentos. Aqui só conferimos os dados. Ouve-se então a chamada interminável para outro ramal. Nesse ponto, finalmente, você passa a acreditar ter liquidado de vez com o Minotauro em seu labirinto. Seus problemas estão chegando ao fim. Enquanto isso, prossegue a chamada para o ramal que você foi transferido. Uma gravação faz com que você esqueça de ligar novamente, e depois da espera, você começa a imaginar que correria não estaria havendo naquela sala de atendimento da empresa, com todos atabalhoados buscando um meio de ajudá-lo com presteza. Um devaneio. Mais alguns minutos e a ligação cai. Poderia ter sido proposital? Eles ousariam tamanha tortura? Nesse ponto, você passa a ter a certeza de que no lugar de nervos estão fibras óticas no corpo daquela gente.

Nova chamada, novo atendente. Todo o processo reiniciado. Não adianta reclamar. Nessa nova tentativa, você tenta estabelecer um diálogo humanizado e começa a falar das razões íntimas que o levou a desistir do pequeno chip. Evoca a mãe doente, a necessidade de se desfazer de algumas despesas. Nessa tentativa de sensibilizar o que pode ser um atendente robô, com o coração de lata, você começa a agir já sob o que parece ser a síndrome de Estocolmo, buscando em seu algoz alguma identificação. Fala como deve ser triste passar tantas horas em um lugar estafante como esse enquanto os filhos ficam com a vizinha.

Agora, seu novo atendente, vendo o número de protocolos do seu CPF, começa a perceber claramente que você está a se render. Seguem-se novos questionários e a decisão derradeira. Você será transferido para o departamento das soluções racionais. Feita a transferência, é preciso aguardar ser atendido. O telefone chama, chama. Enfim, o Francisco aparece falando como gente. Faz todo o processo, garante que cancelou o chip e de repente pi, pi, pi, pi. Agora é esperar a assessoria de imprensa da empresaperguntar como pode me ajudar. E eu repetir como todas as vezes. Resolva o problema dos clientes de todo o Brasil!

HISTÓRIA DE BRASÍLIA

Andamento de papéis. Melhorar a máquina burocrática, porque, atualmente, um “habite-se” demora às vezes três meses para ser dado, quando devia possuir pessoal em condições de prestar pronto serviço. (Publicado em 17/9/1961)

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