Zé Gotinha de fuzil

Publicado em Crônicas
Crédito: Paulo de Araújo/CB/D.A Press. Brasil. Brasília – DF. Zé Gotinha durante campanha de vacinação contra a poliomelite no posto de saúde de Santa Maria.

 

 

Severino Francisco

 

Pobre Zé Gotinha! O personagem que transformou a vacinação em uma festa para as crianças foi reduzido à condição de miliciano com um fuzil nas mãos. Esse é o anti-Zé Gotinha e o anti-Brasil, mesmo que venha enrolado, indebitamente, na bandeira brasileira. O Zé Gotinha é candango e, por isso, brasileiríssimo.

 

O artista plástico Darlan Rosa, mineiro de Coromandel, acumulou uma larga experiência em lidar com as crianças desde quando fazia os cenários e desenhava ao vivo no programa Carrossel, da TV Brasília.

 

Em tempos pré-internet, o programa chegou a cravar 92% de audiência, segundo o Ibope. O Unicef contratou Darlan em 1986 para fazer a logo de uma campanha, pois o Brasil havia se comprometido a erradicar a poliomelite até 1990. Darlan foi convidado a viajar para o Nordeste para conhecer a realidade brasileira.

 

Naquela época, o Exército estava engajado na vacinação, cuidando de toda a logística. Mas havia muito preconceito, quando as crianças ouviam falar de vacina, tinham medo e se escondiam debaixo da cama. Então, ele propôs uma campanha para que o processo de imunização fosse uma festa e as crianças se tornassem os principais agentes da saúde. Elas mesmas lembrariam aos pais a necessidade da vacinação.

 

E foi aí que nasceu o personagem do Zé Gotinha. Com mineira simplicidade, Darlan imaginou a figura com uma síntese extrema, formada apenas por duas gotas: uma para a cabeça e a outra para o corpo. Funcionou, era fácil e democrática, qualquer criança poderia desenhar ou redesenhar a figura.

 

Darlan pediu que um grupo de Curitiba criasse um boneco, que desfilou por toda a cidade em um carro do Corpo de Bombeiros. As crianças faziam filas pelas ruas para ver o Zé Gotinha, nosso herói com caráter. Meus filhos se vacinaram sob a influência do carismático personagem.

 

Graças à simpatia do nosso herói e a competência do nosso sistema público de saúde, o Brasil conseguiu erradicar a poliomelite, a varíola, a rubéola, entre outras doenças. Mas é preciso lembrar que atrás do Zé Gotinha existia a responsabilidade na compra de vacinas, uma rede de postos espalhada pelo país e milhares de profissionais qualificados.

 

O Brasil se tornou referência mundial em vacinação. Tem capacidade de imunizar 60 milhões de pessoas por mês. O sucesso do Zé Gotinha levou Darlan a ser convidado a fazer uma campanha para sensibilizar as crianças de Angola, filhas de guerrilheiros rebeldes.

 

Zé Gotinha foi pensado na condição de personagem educativo. Reduzi-lo à condição de miliciano é desespero de quem apostou no negacionismo e, com 280 milhões de mortos, sofre pressão do Congresso Nacional, dos cidadãos, da imprensa, das instituições e até os investidores internacionais. Em plena pandemia, fizeram decretos para liberar as armas e colocaram no Ministério da Saúde militares que nada entendem de saúde.

 

Não se combate o vírus com fuzis. O resultado é o colapso do sistema de saúde e a transformação do Brasil em ameaça global de saúde. Negar a vacina é fazer apologia da contaminação, da doença e da morte. Durante uma cerimônia, Zé Gotinha negou-se a apertar a mão do presidente e reafirmou a necessidade do isolamento social.

 

Zé Gotinha é o nosso herói com caráter. Para ele, a vida está acima de tudo, e a Constituição acima de todos. Deixem o nosso personagem em paz e concentrem os esforços em comprar as vacinas que salvarão o povo brasileiro.

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