Severino Francisco
Estou com os olhos inebriados pelas imagens da exposição retrospectiva do fotógrafo Walter Firmo, No verbo do silêncio a síntese do grito, em cartaz no CCBB, com mais de 260 imagens de mais de 70 anos de atividade.
Não existe olhar neutro, todo olhar é político, escreve Firmo. No entanto, ao fotografar ambulantes, crianças, senhoras idosas, festas e ritos populares, ele jamais é panfletário. Procura extrair a beleza do mais humilde e anônimo personagem do povo negro, animado por uma grande solidariedade.
Mas, ao mesmo tempo, cria composições reveladoras da precariedade, da miséria e das desigualdades. Mostra a história afetiva impregnada no ambiente e nos objetos. Ele fotografa com o espírito do diretor de cinema, que concebe, monta e recorta a cena. Algumas fotos parecem uma tomada de um filme de Glauber Rocha. Cada uma é um cinema completo, rico em simbolismo e em lirismo.
Firmo se identificou muito com o personagem de um menino que oferecia algodão doce na praia. O fotógrafo também se considera um vendedor de sonhos, mas dotado de espírito crítico e sensibilidade social. “A fotografia é uma grande mentira”, disse Firmo em entrevista à repórter Nahima Maciel, do Correio. “Não existe verdade fotográfica porque um segundo depois do clique aquilo não é mais verdade.” Todavia, Firmo eterniza aqueles instantes fugazes da vida brasileira que cabem em um átimo de luz. Ele injetou a poesia no fotojornalismo brasileiro.
O segmento dos grandes artistas negros brasileiros é permeado de fotos memoráveis, em que Firmo capta a alma de cada personagem. Paulinho da Viola aparece com uma elegância de príncipe do samba. Arthur Bispo do Rosário é captado com uma chispa de paixão nos olhos envolto no manto sagrado tecido para se encontrar com Deus. Clementina de Jesus é revelada de costas em frente ao palco. Dona Ivone Lara emerge de dentro de uma cortina de plástico singela, mas de um colorido que evoca os matizes da Estação Primeira de Mangueira.
Além disso, ele não veio a Brasília na condição de celebridade cultural. É um brasileiro da mais alta qualidade. Interagiu com todos que o procuraram. Encantou-se com a consciência de negritude da brasiliense Lidia Garcia e a convidou para ser personagem de um ensaio fotográfico no CCBB.
Durante uma visita guiada pela exposição, o crítico e professor de cinema Sérgio Moriconi fotografou, com o celular, Walter Firmo no meio da foto de duas crianças negras. Alguém passou a imagem para Firmo, ele gostou tanto que pediu para ser impressa e assinada, pois pretende colocá-la na parede de casa. Foi embora e deixou saudade.
Walter Firmo é um grande fotógrafo brasileiro, mas ele é mais do que isto; é um grande artista brasileiro. Uma foto de Firmo equivale a um samba de Cartola, uma pintura de Di Cavalcanti, um plano de Nelson Pereira dos Santos, uma tela de Guinnard, um conto de Lima Barreto, um ponto de umbanda ou uma folha seca de Didi. Firmo é profundamente brasileiro. Nos reconecta com o Brasil popular que tanto amamos e que foi tão massacrado ao longo da história.
As suas fotos conferem dignidade ao povo brasileiro. Essa exposição retrospectiva lava os olhos e alma na luz da beleza. É um raro painel ou um cinema transcendental da negritude brasileira. Sem fechar os olhos para a desigualdade, Firmo celebra a vida, o corpo e o prazer.
A gente sai da mostra em estado de graça, com vontade de chorar as tais lágrimas de esguicho de que falava Nelson Rodrigues, lágrimas da mais pura alegria porque essas imagens nos reconectam com a alma brasileira.
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