Ventoinha de canudo

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Severino Francisco

Confesso que não fui e gostei do desfile do bloco Ventoinha de Canudo. Explico: acompanho o bloco há muito tempo. Eles vieram à redação em dos carnavais antes da pandemia e pude apreciar o sopro e o ritmo da trupe. Durante o carnaval, transformam as tesourinhas em circuito para a festa, arrastando gente de todas as idades. É bonito ver as crianças andando, crianças encarapitadas nos ombros dos pais e ou ao lado idosos nas superquadras atrás não do trio elétrico, mas do sopro delicado da banda de pífanos.

Elas têm caixas de percussão, mas imaginei que se perderiam na imensidão da cidade espacial. No entanto, não é isso que acontece. O repertório do grupo é muito bom e inventivo. Em um dos desfiles, divisei uma filha enorme de brincantes dançando excitados por uma música frenética que me provocou certo estranhamento. Será que esses ouvidos são meus? Era música de Natal no carnaval? Sim, era o clássico Boas festas, de Assis Valente.

E os brincantes cantavam com letra: “Já faz tempo que eu pedi/Mas o meu Papai Noel não vem/Com certeza já morreu/Ou então felicidade/É brinquedo que não tem”. É o hino do natal brasileiro, um hino triste e pungente, que esfrega em nossa cara o drama das desigualdades sociais. Mas, vejam só, sem deixar de por o dedo na ferida, a mudança da canção original em marchinha injetou energia e alegria na música. É triste, mas nós vamos à luta, com muita alegria.

Aliás, suponho que o próprio Assis Valente aprovaria e choraria as tais lágrimas de esguicho de que falava Nelson Rodrigues, se assistisse ao desfile do Ventoinha de Canudo pelas tesourinhas da Asa Norte, pois em outro samba, ele expôs a mutação da tristeza em alegria da festa popular brasileira: “Minha gente era triste e amargurada/Inventou a batucada/Pra deixar de padecer/Salve o prazer, salve o prazer…”

É muito bonita essa ocupação democrática, pacífica e brincante que o Ventoinha de Canudo promove na cidade. As famílias, as avós e as crianças fecham a Entrequadra 205/206 e inventam um caminho de pedestres onde só reinava soberano o carro. Nunca ninguém havia se aventurado a caminhar pelas tesourinhas.

De repente, pode acontecer uma grande roda, com todos enlaçando as mãos, sob o canto de Quem me deu foi lia, na tesourinha ou em um balão da superquadra: “Essa ciranda quem me deu foi Lia/Que mora na ilha de Itamaracá…”

A base do Ventoinha é formada por um grupo de músicos profissionais: Dani Neri, Tarzan, Ivaldo Gadelha, Davi Abreu, Juliana Sarkis, Jorge Lacerda, Fernando Rodrigues e Pedro Tupan. O grupo nasceu em 2004, durante um Curso de Verão na Escola de Música de Brasília, quando vários integrantes da trupe se perguntaram onde brincariam o carnaval. E a respota foi formarem o próprio bloquinho, a primeira banda de pífanos de Brasília, para ocupar as ruas.

Nunca tiveram a pretensão de entrar no Livro dos Recordes. Querem permanecer uma trupe autêntica de brincantes, mas expandir o trabalho. No sopro do Ventoinha, o baião, o xote, os caboclinhos, os afoxés e as marchinhas de carnaval passam por um rebrasileiramento brasiliense. Dani Neri saiu grávida para desfilar e os filhos que carregava na barriga saem hoje no bloco. É assim que se forma uma tradição em uma cidade nova. O bloco da tesourinha celebrou duas décadas de carnaval. Vida longa para o Ventoinha de Canudo!

Severino

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