Severino Francisco
Sou um repórter distraído, mas, mesmo assim, em minhas andanças, percebo que aumentou muito a população de aves na cidade. Pássaros visitam, diariamente, as janelas dos prédios. Alguns trinam com tanta delicadeza que poderiam se apresentar no Clube do Choro. Outros grasnam com tal contundência que fariam sucesso no Porão do Rock. O Plano Piloto é um campo privilegiado para a contemplação, a fruição e a observação das aves.
O ambiente favorável atrai aves migratórias de outros países. Eu tenho um consultor muito especial para o tema: o arquiteto de formação acriano Tancredo Maia, que se mudou para Brasília em 1963. Cresceu no meio da natureza, dos rios e dos igarapés. Com 10 anos, fazia coleção ornitológica e observação científica. Classificava os ovos de pássaros por tamanho.
Em Brasília, ele criou o grupo Observaves e acumulou mais horas na contemplação de pássaros do que beija-flor de voo. Tancredo acaba de se instalar na cidadezinha de Olhos d’Água, em busca de sossego e concentração para realizar um projeto. Mas liguei e ele não resistiu em passarinhar, ou seja, falar de passarinhos.
Perguntei se a pandemia atraiu mais pássaros para a cidade e ele confirmou que sim. O silenciamento urbano pareceu agradável a certas espécies de periquitos, mas com o arrefecimento da crise sanitária, tudo voltou à rotina. O caso das curicacas, uma ave silvestre que passou a ser vista com frequência na Asa Sul, é anterior à pandemia. Ela tem um bico recurvado que facilita escarafunchar a terra em busca de insetos.
Tancredo não percebe (ainda) maiores alterações no comportamento das aves em razão das mudanças climáticas. Apenas constata que elas costumam aparecer mais cedo e mais tarde, quando o sol amaina, em busca de alimentação, leia-se, frutas e insetos.
No início, a cidade-parque era apenas um conceito, mas, com o decorrer do tempo, as árvores cresceram, floresceram e tomaram conta da cidade, com farta oferta de alimento. Se considerar apenas as áreas urbanas do Rio de Janeiro, de Salvador ou de Curitiba, Brasília é a cidade com o maior número e a maior variedade de aves, arrisca Tancredo. Você encontra uma coruja buraqueira na caolha da Biblioteca Demonstrativa do Instituto Nacional do Livro.
Tancredo coleciona muitas histórias fantasticamente reais. É o caso da saga do bacurau norte-americano migratório, que viaja de 8 a 10 mil km para o Brasil e, mais precisamente para Brasília, quando começa o inverno nos EUA. Os biólogos já fizeram a experiência de colocar GPS nas aves.
É impressionante como não se perdem. Não fazem um voo aleatório. Apreciam o calor, o verão e o clima tropical. Diferentemente do urubu ou do gavião, que são planadores, pegam onda de vento e vão em frente, o bacurau bate asas o tempo todo.
É preciso um preparo físico muito bom. Mesmo à noite, batem asas. Mas, ao mesmo tempo, param para descansar e fazem a viagem por etapas. Descem os Estados Unidos juntos, atravessam a América Central e, quando chegam à América do Sul costumam se dispersar. Tancredo acompanhou durante seis anos, o bacurau ocupar a mesma árvore no Estacionamento 10 do Parque da Cidade.
Acontece algo semelhante com a ave batizada de Príncipe, que vem da Argentina e também pode ser vista nos parques da cidade. Com a sua plumagem vermelha e a máscara negra, ele é impressionantemente belo e gracioso. Mas, diferentemente, do bacurau, tem hábitos diurnos. É muito fácil de ser visto. Dá um salto, pega o inseto em voo fulminante e volta ao mesmo lugar, sem perder a realeza.
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