Uma casa para Athos

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Severino Francisco

Certa vez, uma repórter desavisada perguntou a Athos o que ele fez na Semana de Arte de 1922 e ele respondeu: “Fiz 4 anos”. Embora não tenha participado da Semana de 1922, ele era um artista moderno da cabeça até os sapatos. Como todo grande inventor modernista, o suporte para as suas invenções era apenas um detalhe ou uma circunstância. Onde tocou, ele deixou a marca do talento: pinturas, esculturas, desenhos, fotomontagens, máscaras, painéis, paredes, treliças, divisórias, tetos, portas.

Claro que o ponto mais alto são as intervenções que tanto humanizaram os espaços de Brasília e são uma referência internacional. Ele espalhou por Brasília obras que são materializações de sua gentileza, generosidade, delicadeza e elegância para com o outro. É como se dissesse com voz sussurrada: “Sintam-se à vontade, a casa é de vocês”.

Em sua formação, os amigos foram mais importantes do que as escolas e os movimentos. E que amigos! Oscar Niemeyer, Vinicius de Moraes, Darcy Ribeiro, Fernando Sabino, Jorge Amado, Cândido Portinari, Paulo Mendes Campos, Burle Marx, Di Cavalcanti, Pancetti, Scliar. Uma verdadeira constelação modernista.

A princípio, a timidez é um empecilho para constituir uma rede de amizades. Mas a de Athos tinha algo de encantador. Ele fez amigos por onde passou, com seu silêncio, delicadeza e senso de humor. Athos pertencia àquela linhagem em extinção dos cariocas ilustrados, civilizados e elegantes, espiritualmente elegantes.

Os amigos brasilienses criaram a fundação Athos Bulcão, com mais de 700 obras doadas pelo artista. Além de administrar esse acervo, a fundação teve (e tem) grande relevância no sentido de propagar e de fazer justiça ao talento do artista mais importante de Brasília. O reconhecimento nacional e internacional de Athos Bulcão se deve, em grande parte, ao trabalho da fundação. Porque, como se sabe, Athos era um habitante do silêncio, extremamente tímido, não falava, sussurrava.

A Fundação promoveu eventos com a participação de críticos, convidou pesquisadores para conhecer as obras de integração arte-arquitetura, publicou livros e editou vídeos. Graças a essas ações, Athos se tornou reconhecido na condição de um dos grandes artistas do modernismo brasileiro e um dos principais artistas da integração arte-arquitetura no mundo.

Certa vez, escrevi um verbete sobre Athos Bulcão para um livro e submeti à apreciação de alguns estagiários para avaliar a receptividade e o conhecimento. Para a minha surpresa, quase todos conheciam a maior parte das informações do texto. Perguntou como sabiam e eles me responderam que aprenderam na escola. É que, desde 2009, a obra do nosso artista passou a ser conteúdo obrigatório na grade curricular das séries iniciais do Ensino Fundamental no DF, graças novamente a uma articulação da Fundathos.

Por todas essas razões, espero que, brevemente, a doação do terreno para a construção da sede definitiva da Fundação Athos Bulcão, aprovada em audiência pública, no ano passado, seja formalizada. Temos o Espaço Oscar Niemeyer, o Espaço Lucio Costa, o Espaço Israel Pinheiro e o Memorial JK. Falta a sede definitiva da Fundação Athos Bulcão. Ninguém, nesta cidade, merece mais uma sede digna. O projeto arquitetônico de Lelé Filgueiras se tornará mais uma atração turística da cidade. Seria a reparação de uma injustiça e um presente para Brasília e para o Brasil.

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