Severino Francisco
Em meio à avalanche de notícias que aparecem e desaparecem com a mesma velocidade estonteante, uma despertou a minha atenção. Sem saber que era gravado, o ministro da Casa Civil, general Luiz Eduardo Ramos, de 64 anos, deixou escapar, durante reunião do Conselho de Saúde Suplementar, que tomou escondido vacina contra a covid-19: “Tomei escondido, né, porque era a orientação, mas vazou”,
Ramos afirmou, também, que está envolvido pessoalmente na tentativa de convencer o presidente a tomar vacina: “Nós não podemos perder o presidente para um vírus desse”, disse o ministro: “A vida dele no momento corre risco”. E ainda comentou: “Vou ser sincero. Eu, como qualquer ser humano, quero viver. Tenho dois netos maravilhosos, uma mulher linda. Tenho sonhos ainda. Quero viver, pô! Se a ciência, a medicina, está dizendo que é vacina, quem sou eu para me contrapor?”
A inconfidência do ministro vai se perder na voracidade da tragédia sanitária, mas ela tem uma força simbólica que não pode ser ignorada. É extremamente reveladora do grau de submissão dos que comandam o país durante a maior crise sanitária que a humanidade enfrentou.
O ministro da Casa Civil precisa tomar vacina escondido porque o presidente nega a ciência, não compra vacinas, faz campanha contra o distanciamento social, escarnece da máscara, promove aglomerações, reduz a pandemia a uma “gripezinha” e sabota os governadores que sancionam medidas de restrição para defender a vida. Em suma: faz uma política de saúde que levou a morte de 400 milhões de brasileiros.
Talvez o ministro não devesse se preocupar tanto com o presidente. Afinal, o presidente decretou o sigilo de 100 anos do seu cartão de vacinação. Pode ser que a vida dele não esteja tão em risco assim como o ministro imagina. Seria melhor que o ministro dedicasse cuidados à saúde dos brasileiros mortais.
O ministro fala como se não pertencesse ao primeiro escalão desse governo e não tivesse nada a ver com o que acontece no país. Essa postura submissa a caprichos insanos transferida para a pasta da saúde é ainda mais desastrosa, como vimos nos desmandos e omissões em série cometidos pelo general Pazuello. Em nome do “um manda, outro obedece”, ele não comprou vacina, apresentou um plano de imunização capenga com números falsos e levou cloroquina ao Amazonas quando o estado agonizava por falta de oxigênio nos hospitais.
É claro que toda estrutura de qualquer instituição não sobrevive sem respeito à hierarquia. Mas obediência não é submissão. Quem acata uma ordem insana é cúmplice, principalmente se for ministro de Estado. Ainda bem, ao menos para si mesmo, que o general Ramos desobedeceu à orientação suicidária para que não vacinasse.
Pena que não tivesse o mesmo cuidado com a vida dos outros milhões de brasileiros. Se o ministro Pazuello desobedecesse a orientação insensata do presidente e tivesse comprado a vacina talvez fosse considerado hoje herói nacional. Como submeteu-se a uma política obscurantista e irresponsável precisou fugir da CPI no Dia D e na hora H.
O ex-ministro Mandetta não renegou a ciência nem a defesa da vida e foi demitido por isso. Mas saiu maior. Há vitórias que envilecem, e derrotas que engrandecem. Algumas vezes, é necessário traçar uma linha da dignidade em nossas vidas. Quando um ministro precisa tomar vacina escondido, durante uma pandemia, é sinal de que algo muito estranho está acontecendo no país.