Um gesto delicado

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Severino Francisco

Com os olhos de rasgo felino, o corpo esculpido em curvas clássicas e o ar aristocrático, Clarice Lispector era uma deusa em carne e osso, que costumava entortar o pescoço dos homens por onde passava, no ápice da beleza. Existem inúmeros depoimentos sobre a vidasão do seu esplendor feminino. E, mais do que isso, ha´uma galeria de fotos atestando a veracidade dos fatos aos São Tomés incréus, que precisam ver para crer. A própria Clarice evocava o caso de um homem que havia ficado tão fascinado com a beleza dela que ameaçou se sucidar se não fosse correspondido.

O caminho da frivolidade se abre, facilmente, às mulheres muito belas. No entanto, definitivamente, não era esse o caso de Clarice. Ela era uma deusa abissal, metafísica e enigmática. Parecia manter uma nobre distância do restante dos homens mortais, como se fosse uma rainha inalcançável que enxota plebeus piolhentos. Ela justificava a sua reserva sob o argumento paradoxal de ser muito íntima e, por isso, ter de se resguardar do contato trivial com outras pessoas.

Contudo, um fato abalaria profundamente Clarice. Tinha dois vícios: o cigarro e os remédios para dormir, conta Benjamim Moser, autor de excelente biografia sobre a escritora ucraniana, que se considerava, antes de tudo, pernambucana. Ela dormiu com um cigarro aceso, o fogo começou a atear pelas cortinas, se alastrou pelo apartamento e provocou um incêndio, que a atingiu gravemente. Durante três dias, ficou entre a vida e a morte. Os médicos chegaram a cogitar a amputação da mão direita.

Felizmente, a ameaça foi conjurada, mas Clarice ficou com duas sequelas: cicatrizes na mão direita e nas pernas. Era como se a beleza da juventude lhe fosse roubada aos 46 anos. Ela continuaria bela, mas o acontecimento teria impacto muito grande na vida de Clarice. Certa vez, encontrou-se com Otto Lara Resende em um almoço e, num dos típicos rompantes, perguntou ao amigo à queima-roupa: “Que é que você está olhando? Quer ver as minhas cicatrizes?” E, mostrou, abruptamente, as marcas deixadas pelas queimaduras nas pernas.

Depois que se separou do marido diplomata, Maury Gurgel, Clarice precisou sobreviver como jornalista e realizou uma série de entrevistas com personalidades do mundo da cultura e da política. Claro que o nosso poeta Vinicius de Moraes entrou na lista e o tema do amor entrou no centro da conversa: “Eu acho que o amor que constrói para a eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais perigoso, certamente, o mais doloroso. Esse amor é o único que tem a dimensão do infinito”, disse Vinicius.

Ao ser indagado pro Clarice se acaba um caso porque encontra outra mulher ou porque se cansa da primeira, o Poetinha responde: “Na minha vida, tem sido como se uma mulher me depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor paixão pela sua própria intensidade não tem condições de sobreviver”.

Algumas vezes, Vinicius ficava mal-humorado em ser tratado na condição de ídolo, mas começou a ter mais paciência, quando uma garota disse a ele que era uma pessoa íntima, vivia nas estantes de nossos livros, nas cançóes que todo mundo canta na televisão: “Você vive conosco em nossa casa”. De repente, no meio da conversa, Vinicius disse algo que deixou Clarice profundamente comovida e a fez entender porque ele era o poeta do amor: “Tenho muita ternura por sua mão queimada”.

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