Um filme para Bianchetti

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Darcy Ribeiro tinha como um dos seus lemas a divisa: só se fazem mestres com mestres. Por isso, convidou uma constelação de quase 200 intelectuais, entre os mais brilhantes do país, para criar a Universidade de Brasília. E um dos mestres que Darcy trouxe para Brasília foi o pintor gaúcho Glênio Bianchetti. Não queria uma universidade que formasse androides competentes, mas, sim, profissionais sensíveis que oferecessem soluções para os problemas do país.

Só agora, graças a um acaso, pude ver Bianchetti, o belo filme Renato Barbieri, o mesmo diretor brasiliense do clássico Atlântico negro, e de Tesouro Natterer, o primeiro documentário brasileiro qualificado para o Oscar. O mais importante é que Barbieri conta a história de Glênio Bianchetti, plasticamente, com as imagens da pintura do artista. E tudo com uma fluência musical que ritualiza a beleza que irrompe dos quadros de Bianchetti.

Quando tinha 16 anos, Bianchetti fundou com Glauco Rodrigues, Carlos Scliar e Danúbio Gonçalves, o Clube de Gravura de Bagé, que projetou, nacionalmente, o nome da pequena cidade gaúcha. Vinha de uma família pragmática, mas decidiu ser artista contra a vontade de todos.

Darcy era amigo de Carlos Scliar e disse a ele que queria conhecer Glênio e convidá-lo para participar da criação da Universidade de Brasília. Com o entusiasmo e a fé invencível na educação, na condição de Dom Quixote mineiro, idealista, mas pragmático, Darcy convenceu a todos de que fariam a melhor universidade do Brasil e do mundo. Uma aventura de vanguarda no meio do Cerrado bravo.

Logo, o regime militar atacou o coração do projeto de Brasília: o sistema educacional. Prenderam vários professores. E Glênio era um deles. Foram 27 dias de pesadelo, segundo Ailema, companheira de Glênio. Quando foi solto, Glênio contou à mulher que os colegas professores pediriam demissão, mas ele estava livre, pois tinha seis filhos. Ailema perguntou se seria diferente se não fossem os filhos. Glênio respondeu que sim, que pediria demissão. E, ela replicou: “Então, peça, que a gente segura”.

O que poderia ser um desastre se tornou uma redenção, pois representou o renascimento pleno do artista. Para pagar as contas, Glênio passou a pintar desvairadamente. A luminosidade de Brasília, que tanto o incomodava, se traduziu em uma explosão de cores. Brasília lhe revelou o mistério da cor. Os personagens triviais, os trabalhadores, a cena prosaica de uma mãe abraçando uma criança emanam uma luz humanista.

Toda uma gradação de azuis surge da paleta de Glênio como se fossem matizes do céu de Brasília. O filme mostra a gênese da criação dos quadros. Como uma cor vibra mais se está ao lado ou em conjunção com outras: “Cor é luz, cor é vida”, afirma Glênio.”A cor me dá alegria de fazer e de viver”. Jorge Amado escreveu sobre Glênio: “Seus quadros me comovem com uma luz profunda, tão brasileira”. O filme de Renato Barbieri é pintura em movimento com som, mas ancorado em uma pesquisa minuciosa. É documentário com olho de arte. Enleva e informa.

Athos Bulcão, Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Vladimir Carvalho, Dulcina de Moraes, Burle Marx, Clésio, Clodo, Glênio Bianchetti. Os mestres de Brasília se foram ou estão partindo. Precisamos honrar sua memória, não por espírito de nostalgia, mas pela razão invocada por Darcy Ribeiro de que só se fazem mestres com mestres. Por isso, seria muito importante a criação da Cinemateca de Brasília, pois facilitaria que um filme como esse Bianchetti, de Renato Barbieri, fizesse parte de um programa educacional. Contribuiria no sentido de formar seres humanos e brasilienses melhores.

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