Sangue de Coca-Cola

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Severino Francisco

A nostalgia de alguns desinformados com a ditadura militar me reavivou a memória sobre o romance Sangue de Coca-Cola, do mineiro Roberto Drummond, uma das melhores ficções sobre o regime militar de 1964, período dramático do país, quando, segundo o autor, “um general Francisco Franco instalou-se no coração de cada brasileiros”.

Há um trecho que considero particularmente memorável e nunca citado nos balanços e antologias literários sobre o regime militar. Durante a Copoa do Mundo de Futebol de 1970, jogada no México, em pleno horror do período mais truculento da ditadrua, o Brasil montou o mais espetacular time de futebol que já pisou nos gramados do planeta, com Pelé, Tostão, Gérson, Rivellino e Jairzinho, entre outras feras. Todo brasileiro decente se deparou com o dilema: torço ou não torço para o Brasil?

Drummond explora precisamente a relação entre futebol e violência política, futebol e alienação, com um olhar lisérgico, numa paródia do estilo épico do famoso locutor Waldir Amaral, da Rádio Globo: “Lá vai Pelé, pelo coração do Brasil, lá vai ele, Pelé, com a bola, passa pelo guerrilheiro urbano morto no Rio de Janeiro com saudade de Minas, passa pelo soneto de Camões ‘Alma gentil que te partiste/tão cedo desta vida descontente/repousa lá no céu eternamente/e viva eu cá na terra’, publicado no Estado de S. Paulo no lugar da notícia sobre o guerrilheiro rubano morto no Rio de Janeiro com saudades de Minas, lá vai Pelé, camisa 10 às costas, pelo coração do Brasil passa pela menina de 1 anos e 8 meses, torturada na Oban em São Paulo para a mãe denunciar o pai da menina”.

E esse Pelé mítico continua fintando as atrocidades cometidas pelos militares de um regime de exceção: “Lá vai Pelé, o Rei, dribla a guerrilheira com rosto de menina morta no Araguaia, passa pelo deputado Rubens Paiva, que foi atirado ao mar e é por isso que está assim: os olhos, os peixes do mar comeram, os cabelos cheios de alga, lá vai Pelé, soberbo, com a bola, passa pelo cadáver molhado cheirando a maresia, tocam sirenes, gritam os gritos abafados”.

Pelé prossegue em seu desvario de dribles, denunciando um gigantesco aparato da censura e da alienação em que o país estava mergulhado, culminando em uma celebração trágica, dramática e dilacerada: “Lá vai Pelé, camisa 10 às costas, lá vai ele, indivíduo competente, pelo coração do Brasil, para a alegria do Presidente, gente como a gente, lá vai Pelé, passa pelo medo, faz tabelinha com a tortura, dribla a morte, lá vai ele, Pelé, camisa 10 às costas, passa pela novela proibida, pelo ex-presidente confinado, pelo ex-presidente exilado, lá vai Pelé, atira: é gol, gol, goooooooooooooool do Brasillllll…”

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