Severino Francisco
Quem parte é o amor de alguém. O título da performance que os artistas brasilienses realizaram na Rodoviária, no primeiro dia do mês, e, no Museu da República, na segunda-feira, é revelador. Representa uma guinada em relação à abordagem oficial sobre os mortos da pandemia, marcada pela indiferença. Os nossos mortos são religados por um irredutível laço de amor.
Esse é o princípio que deveria nortear todas as ações em tempos de guerra sanitária. Sob o comando de Hugo Rodas, nosso bruxo emérito do teatro, um grupo de artistas da cidade participou de um lindo ritual, um ritual de luz, de afeição, de solidariedade e de leveza. Todos com vestimentas imaculadamente brancas acenderam luzes, lançaram balões vermelhos ao céu e reverenciaram nossos mortos. Os números dos que nos deixaram foram projetados na esfera do Museu da República.
Antes de brasileiro, o uruguaio Hugo Rodas se considera candango. Não se trata de uma formalidade. Ele se tornou um dos maiores diretores do teatro brasileiro ao fazer da cidade o campo das suas experimentações estéticas.
A performance é reveladora da profunda interação que Hugo mantém com Brasília. Utilizou uma linguagem de intensa plasticidade em parceria com a arquitetura de Oscar Niemeyer e a espacialidade de Lucio Costa. Configura uma estética singularmente brasiliense de ocupação cultural. É mais um acontecimento que sagra o Museu da República como um marco simbólico da democracia em Brasília.
Durante a pandemia, fomos reduzidos a números. Nos recusaram o reconhecimento de nossos mortos ilustres: Aldir Blanc, Rubem Fonseca, Flávio Migliaccio e Moraes Moreira, entre outros. E, agora, querem nos sonegar até os números verdadeiros dos brasileiros que partiram.
A performance celebrou não apenas os nossos mortos ilustres, mas todos os brasileiros. Foi um ritual de pertencimento. Ante a ausência de empatia e de responsabilidade dos governantes, os artistas declararam: esses mortos, esses brasileiros, são nossos. Eles estão ligados a nós por laços de compaixão, de humanidade, de solidariedade e de amor.
Falaram em nome próprio, mas também em nome dos brasilienses e da nação brasileira. A performance tem um alcance simbólico, trouxe um pouco de luz, delicadeza, afeto e reverência ao humano. É tudo que estamos precisando neste momento para respirar.
Os protocolos de distanciamento e saúde foram respeitados. O ato redime um pouco a Esplanada de manifestações antidemocráticas recentes que envergonham Brasília e o Brasil. Sem nenhuma palavra, toca no coração. Não, não somos números anônimos. A vida não é um número, a morte não é um número, a arte não é um número e o amor não é um número. Quem parte é o amor de alguém.