Severino Francisco
O excelente documentário Mito e música: a mensagem de Fernando Pessoa, codirigido por André Luiz Oliveira e Rama Oliveira, abre com uma sequência ficcional em que o poeta Fernando Pessoa erra entre os monumentos da Esplanada dos Ministérios, sob o fundo da cidade espacial. Aquela imagem me marcou porque, muito antes de ver o filme, tinha a impressão de que Pessoa se sentiria em casa na atmosfera metafísica da cidade.
Imagino que, se visitasse Brasília, talvez dissesse o mesmo que Clarice Lispector: reconheço esta cidade no fundo do meu sonho. A obra dele é muito vasta. Mas, ao ler certos poemas de Pessoa, parece-me que a inquietação existencial e o sentimento metafísico estão em sintonia com a solitude brasiliana.
Como percebe o leitor, estou devaneando com o objetivo de criar uma moldura para algo mais tangível. É que o professor de arquitetura da UnB, Frederico Holanda, me enviou um precioso presente: um poema de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Pessoa.
No texto, é possível estabelecer uma relação do poeta português com Brasília muito menos vaga e muito mais estreita. Indiretamente, o poema resvala em Brasília ao falar da relação do ato cotidiano de ver nas cidades.
O ponto de vista do poeta é o pico do monte em uma aldeia. Essa perspectiva descortina uma visão mais ampla e propõe uma outra relação com o nosso tamanho no mundo: “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…/Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,/Porque eu sou do tamanho do que vejo/E não do tamanho da minha altura…”
Embora prometam a riqueza de experiências, as cidades grandes empobrecem a visão com seu atulhamento desordenado, que cresce atabalhoadamente para todos os lados.“Nas cidades a vida é mais pequena/Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro”.
Enquanto isso, nas cidades a visão é impedida pela ocupação do espaço, restringido o ato essencial de contemplar: “Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,/Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,/Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,/E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.”
O poema de Pessoa pode ser lido, indiretamente, como um elogio a Brasília. É uma capital com qualidades campestres. Moramos em um altiplano pertinho do céu. A contemplação da abóbada celeste é uma das riquezas da cidade. Ela é uma criação urbanística. Quem nos concedeu esse privilégio lírico e metafísico foi Lucio Costa.
A escala bucólica não é um vazio a ser ocupado, açodadamente, por prédios. Há algum tempo dois arquitetos apresentaram a proposição de tombar o céu de Brasília. A proposta é poética, mas não é factível. Para preservar essa riqueza imaterial nós temos de ficar atentos, a todo tempo, à disputa do poder econômico em detrimento da preservação da qualidade de vida dos brasilienses, que coloca em risco um aspecto crucial do Plano Piloto.
É uma riqueza coletiva imaterial que deveria ser partilhada e reverenciada, democraticamente, por todos e não pode ser perdida. Não é preciso pagar para contemplar o céu de Brasília. Como disse Clarice Lispector, os arquitetos de Brasília fizeram prédios com espaço para nuvens.
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