Severino Francisco
Li com desatenção algumas ficções de José Lins do Rego no curso secundário. Mas, agora, com a quarentena, pude apreciar melhor o poder de evocação, o lirismo e a dramaticidade do escritor paraibano. Ao falar da civilização do açúcar no Nordeste patriarcal, ele toca, com pungente humanismo, no coração das mazelas que nos atormentam no século 21: o colonialismo, a chaga da escravidão, o racismo, a deseducação, as desigualdades sociais e a manipulação política.
Deu-me gana de escrever sobre Zé Lins, mas queria fazer uma conexão com Brasília. De repente, lembrei de um liame que une Brasília aos brasis: O engenho de Zé Lins, o belo documentário dirigido por Vladimir Carvalho. Estava escrito em algum lugar que esse teria de ser um grande filme. Vejam como os deuses jogam seus dados.
Com o objetivo de se aprofundar nas pesquisas, Vladimir decidiu alugar um apartamento no Rio de Janeiro. Um belo dia, alguém bateu na porta: era um rapaz educado e simpático, proprietário do apartamento de baixo. Ele vinha alertar que havia um vazamento no imóvel ocupado por Vladimir.
Vladimir desceu de bermudas para ver o estrago e, quando entrou na sala, levou um susto, pois se deparou com várias fotos de José Lins emolduradas: “Você conhece José Lins?”, perguntou Vladimir, intrigado. “Zé Lins é meu avô”, respondeu o rapaz.
Vladimir informou: “Estou fazendo um documentário sobre Zé Lins”. Cumpadre Quelemém, o personagem de Grande Sertão: Veredas, versado em Alan Kardec, diria que não existe acaso no mundo, tudo obedece a um plano secreto. A partir daí, o neto de Zé Lins abriu todos os caminhos e atalhos para a pesquisa: a família, os álbuns de fotos, os contatos com pessoas.
Zé Lins era um grande escritor e um personagem fascinante. O filme de Vladimir ilumina a ambos, revelando, de corpo inteiro, o autor de Menino de engenho, com suas grandezas, vulnerabilidades, contradições e segredos. Zé Lins era flamenguista doente, o que chega a ser plenonasmo, pois não existe flamenguista que não seja doente.
Certa vez, ele foi com um amigo assistir a um jogo, no Maracanã, entre o seu amado Flamengo e o Racing, da Argentina.O Mengão fez 1×0 e Zé Lins enlouqueceu. Mas o Racing empatou e um grupo de argentinos sentado logo atrás vibrou (e com a solidariedade do amigo de Zé Lins, torcedor do Fluminense).
O Racing virou o jogo para 2×1, com nova festa dos hermanos e do amigo tricolor, para a desolação de Zé Lins. A certa altura, irritado, ele virou-se para o amigo da onça tricolor e fulminou: “Que você era Fluminense eu sabia. Só não sabia que dava para argentino”.
Com o instinto de repórter e o olho do cineasta, Vladimir reaviva a importância do Movimento Regionalista, a versão modernista nordestina da revolução estética dos paulistas de 1922, criada a partir de Gilberto Freyre e José Lins do Rego; desvenda o mistério da melancolia do escritor paraibano (ele matou acidentalmente um moleque de engenho, nos tempos de criança); revela detalhes pungentes das amizades e da doença que matou Zé Lins.
O engenho de Zé Lins deveria ser utilizado como material de sensibilização para os alunos de literatura do segundo grau. Se tivesse visto um filme como esse na adolescência, não teria sido um leitor tão desatento do escritor paraibano. Ele tornou-se uma pessoa em carne e osso, um amigo, um chegado. Com esse documentário, Vladimir não apenas restitui a memória de Zé Lins, mas, praticamente, reinventa Zé Lins para a história da cultura brasileira.
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