Severino Francisco
É muito bom escutar música circulando de carro pela cidade, pois em alguns instantes a gente tem a sensação de flutuar, perdido no espaço. Nós estávamos ouvindo Reconvexo, uma das canções preferidas de Caetano Veloso, quando fui lembrado de que a inspiração ou a provocação teria sido uma polêmica com Paulo Francis. Corri atrás da gênese da canção, tentando atar os fios e ela se tornou ainda mais interessante.
Em 1983, o jornalista Roberto D’Ávila levou Caetano Veloso para uma entrevista com Mick Jagger, o vocalista dos Rolling Stones. Ao assistir à conversa, Francis escreveu, na coluna que mantinha na Folha de S. Paulo, o artigo Pajé doce e maltrapilho, em que desancava Caetano. Segundo Francis, Caetano teve uma postura embasbacada e servil ante Jagger. Ao ser perguntado sobre se havia se tornado uma pessoa mais tolerante, o vocalista dos Rolling Stones, brincando, que não era, batia até em crianças. E, ainda, que tentava ser mais tolerante com os latino-americanos. Seria uma humilhação para o “nosso representante no vídeo”, segundo Francis.
Francis espicaça Caetano também por ter perguntado qual o lugar do rock na música. Segundo o jornalista, era uma questão de um amadorismo total, servia apenas para seminários de “comunicação” no interior da Bahia. No entanto, ao assistir o vídeo do programa Conexão Internacional, é possível constatar, facilmente, o erro de Francis. Quem fez a pergunta sobre a tolerância foi D’Ávila e não Caetano Veloso.
Na verdade, era Francis quem gania de humildade vira-lata pelos Estados Unidos e ditava cátedra sobre o Brasil, diretamente de Nova York, sem espaço para escrever em nenhum jornal americano. Ele era um jornalista talentoso, mas se perdeu quando se desligou do Brasil.
E quanto a indagação sobre o rock, Francis tinha um preconceito total ao pop e desqualificava, imediatamente, qualquer manifestação popular. Alguns meses depois, ao participar de uma entrevista coletiva sobre um show e ao ser interpelado sobre a reação de Francis, Caetano deu uma resposta que, nos dias de hoje, seria considerada homofóbica. Chamou Francis de “bicha enrustida”, “boneca travada” e “direitista. Não foi a melhor réplica.
Como o próprio Caetano disse em Língua: “Se você tem uma ideia incrível/É melhor fazer uma canção/Está provado que só é possível filosofar em alemão”. E foi o que ele fez em Reconvexo. A inspiração inicial foi uma situação vivida em Roma. Certo dia, Caetano acordou e se surpreendeu com os carros empoeirados. Alguns amigos esclareceram: “Isso é areia, que vem do deserto do Saara, que o vento traz”.
Na letra, Caetano assume aspectos tocantes de sua formação de baiano e de traços culturais brasileiros como se fosse um eu coletivo e contrapõe à figura do “careta” que despreza o Brasil, personificado por Francis. “Quem não rezou a novena de Dona Canô/Quem não seguiu o mendigo Beija-Flor/Quem não sentiu a elegância sutil de Bobô”.
Mas o interessante é que ele não faz uma defesa xenófoba do Brasil. A letra é permeada de referências ao universo internacional pop. A risada de Andy Warhol, os brincos do homem negro americano, o swing sutil de Henri Salvador: “Você não me pega/Você nem chega a me ver/Meu som te cega, careta, quem é você?/Quem é você que não seguiu o Olodum balançando o Pelô”. Caetano inventou a palavra reconvexo para se contrapor a recôncavo. “Quem não é recôncavo, nem pode ser reconvexo”. Não poderia haver resposta melhor, mais inventiva, mais poética, mais elegante e contundente a Paulo Francis e a todos que pensam como ele: “Não tenho escolha careta, vou te descartar”.
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