Severino Francisco
Quando eu trabalhava no caderno de turismo do Correio, participei de um concurso para avaliar a melhor matéria sobre o Recife e eu ganhei. Fui brindado com o troféu Mestre Salu, o mentor de Chico Science no maracatu. Pediram a um estagiário que me entrevistasse e registrasse algumas aspas para uma nota.
Eu declarei ao jornalista neófito: “Prefiro ganhar um troféu com um mestre do maracatu do que ganhar o Oscar, aquele festa cafona”. O estagiário riu muito e me perguntou o que eu tinha a dizer a sério. Confirmei tudo o que realmente eu pensava e penso do famoso prêmio. No entanto, não sou louco de negar a relevância da estatueta do ponto de vista do mercado cinematográfico.
E, por isso, o prêmio de Melhor Filme Internacional para Ainda estou aqui deve ser celebrado como um marco para o cinema brasileiro e para a cultura brasileira. Esse filme é representativo do melhor do Cinema Novo, da Jovem Guarda, da Tropicália e do teatro nacional contemporâneo. Walter Salles é um filhote do Cinema Novo e do Neorrealismo Italiano. Não é por acaso que, na lista de 10 melhores filmes, ele incluiu Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Roma cidade aberta, de Roberto Rossellini.
Roma cidade aberta, lançado em 1945, é o primeiro de uma trilogia de filmes sobre a resistência da Itália no período da Segunda Guerra Mundial. Com uma realismo bruto, mas um olhar profundamente humanista, Rossellini celebra a coragem de personagens do povo na luta contra o fascismo, em uma Roma ocupada pelos nazistas.
O neorrealismo impactou Nelson Pereira dos Santos na realização de Vidas secas, versão cinematizada da ficção de Graciliano Ramos. “Falo somente com o que falo/Com as mesmas palavras/Girando ao redor do sol/que as limpa do que não é faca”, escreveu João Cabral no poema intitulado Graciliano Ramos. É como se Nelson Pereira nos desse novos olhos e ouvidos, novos sentidos, para perceber o drama do casal de retirantes, dos dois filhos e da cachorra Baleia.
Tanto Roma cidade aberta quanto Vidas secas são de uma pungência de fazer chorar as tais lágrimas de esguicho de que fala Nelson Rodrigues. É a mesma resistência presente em Ainda estou aqui. Walter Salles misturou a luz crítica do Cinema Novo e a luz humanista do neorrealismo italiano.
O talento do teatro brasileiro está em primeiro plano em Ainda estou aqui, com a participação luxuosa de representantes de duas gerações: Fernanda Montenegro e Fernanda Torres. Ambas figuram na lista das mais principais atrizes brasileiras, que roubam qualquer cena na qual estejam envolvidas.
E o drama recebe trilha sonora do rock nascido na Jovem Guarda com a bela canção É preciso dar um jeito meu amigo, parceria de Erasmo Carlos e Roberto Carlos, nosso maior cantor romântico. Tido na conta de alienado, Roberto disse, em entrevista recente, que a letra é dele e a canção foi composta como uma reação a um dos períodos mais dolorosos da ditadura, inclusive sob o impacto da notícia do desaparecimento de Rubens Paiva.
Tom Zé comparece no filme com a canção Jimi Renda-se, numa paródia muito representativa da Tropicália, movimento do qual o baiano foi um dos expoentes. Como se vê, Ainda estou aqui é tão bom porque enfeixa o melhor da arte brasileira. É puro Brasil concentrado para mostrar o que temos de melhor: o espírito de luta, a generosidade, a solidariedade, a amizade, o apreço pela arte e a amorosidade .
Em entrevista ao canal do Oscar, Fernanda Torres declarou ser seu maior desejo ganhar o prêmio de Rainha do carnaval. E ganhou mesmo, Fernanda. Você reinou nos bloquinhos de Brasília, nos bonecos de Olinda, na passarela da Marques de Sapucaí e no batuque do Olodum. Fernanda não ganhou a estatueta de melhor atriz, mas precisou apenas de espaço para se tornar a maior estrela da festa e conquistar o Oscar de inteligência, talento, elegância, dignidade, carisma e bom humor. Essas qualidades a sagraram rainha do carnaval de 2025 pelas ruas de Brasília e do Brasil. É muito bom quando o Brasil é Brasil.

