Sempre que alguém freia o carro e pede para que eu atravesse alguma via, imagino que está inspirado pela frase do profeta: “Gentileza gera amor e paz”. O profeta Gentileza morou em Brasília na década de 1980; eu o vi diversas vezes no Restaurante Coisas da Terra, com a estampa de Cristo, os olhos alucinados e a tabuleta com o lema sagrado. Ele era uma artista conceitual, a sua frase mobilizou um movimento pela delicadeza nas relações cotidianas.
Estava folheando o excelente livro-reportagem O espetáculo mais triste da Terra – O incêndio do Gran Circo Norte Americano, de Mauro Ventura (Cia das Letras), quando tropecei na história do profeta Gentileza. No momento em que o mundo parece assolado pelos loucos do mal, vale a pena evocar a trajetória de um louco do bem, tocado tão fundamente pela compaixão e pela bondade.
O nome de Gentileza no cartório era José Datrino. Nasceu em 11 de abril de 1917, na cidadezinha de Cafelândia, no interior de São Paulo. Quando tinha 12 anos, intuiu que constituiria família e patrimônio, mas abandonaria tudo para cumprir sua missão na Terra. A tragédia do incêndio do Gran Circo Norte-Americano o deixaram tão compadecido com a dor das vítimas que teve uma revelação divina, ordenando que assumisse a personalidade do profeta Gentileza.
Associou o incêndio ao fim do mundo e expressou o espanto em versos: “O profeta do lado de lá passou para o lado de cá/Pra consolar os irmãos que eram desconsolados/É isso que aconteceu, e o mundo é redondo e o circo arredondado/Por este motivo, então, o mundo foi acabado”.
Ele havia se tornado um pequeno empresário, dono de três caminhões. Pegou um deles, comprou 100 livros de vinho em Nova Iguaçu e dirigiu-se para Niterói. Lá, perto do circo, passou a brindar com todos.
Bastava pedir “por gentileza” (uma forma de colocar Jesus nas palavras, no cotidiano e no coração) e dizer “agradecido” (invocação da graça, do Espírito Santo de Deus). Ele transformou a gentileza em um caminho místico: “Pedindo por gentileza/E dizendo muito agradecido/É colocar-se logo/na porta do paraíso”.
Gentileza morou no terreno do circo, durante quatro anos, consolando os parentes das vítimas, que chegavam desesperados, alguns com desejo de se suicidar: “Vai, meu filho, seu papai, sua mamãe, seu filhos estão no céu. Morreu o corpo, o espírito não”. Alguns, consolados, diziam: “Ah, seu Gentileza, parece que encontrei Deus aqui. Eu estava desesperado, querendo me jogar embaixo de um trem, e o senhor me consolou para o resto da vida”.
Em 1962, atraído pela fama de louco de Gentileza, o repórter Paulo Soares, do jornal O Fluminense, entrevistou o profeta da delicadeza: “És pobre?”, perguntou Saulo. Gentileza respondeu: “Somos”. E emendou com uma pergunta: “Quais são os brilhantes mais brilhantes dos brilhantes do mundo inteiro?”. E continuou: “Você troca os seus olhos por 30 caminhões, iguais aos meus, cheios de brilhantes?” “Não”, replicou o repórter. E Gentileza comentou: “Então não és pobre, porque os teus olhos valem muito mais”.
Achincalhado, incompreendido e tachado de louco, Gentileza respondeu a seus detratores no documentário realizado pela dupla Dado Amaral e Vinicius Reis: “Qualquer um de vocês pode ser um maluco igual a mim. Sabe o que quer dizer maluco beleza? Quer dizer maluco da natureza, maluco das coisas divinas”. E ainda deu um remate: “Se eu fosse um pateta, não serviria para essa missão”.
Sempre que alguém me faz algum gesto de cordialidade, associo à história do profeta. Ela me revelou que a gentileza é mais do que um sinal de urbanidade; é um gesto carregado de pungente transcendência.
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