Severino Francisco
Acompanhei o trabalho e as ações culturais de Vicente Sá de longe. Eles nos deixou na sexta-feira, aos 67 anos. Publicou nove livros de poesia, dois romances, um de crônica e uma obra dirigida ao público infantil.
Confesso que um dos traços que mais me impressionava nele era a capacidade de conquistar amigos, uma legião de amigos. De todos os lados, eles dizem a mesma coisa: era uma pessoa criativa, afetuosa, elegante, bem-humorada, gentil e solidária. E posso dizer que, embora a distância, fui brindado com um desses gestos de gentileza.
Vestia a aura do poeta romântico, o boêmio da Lua, o filósofo da Asa Norte, mas com o toque de ironia e autoironia modernas. Falava, fazia e vivia a poesia em todos os instantes. No autorretrato poético Assim sou, ele se define assim: “Ninguém sabe o que eu passo/Nem se encontro em meus enganos/sou assim/Pernas e braços/Apenas um/Talvez humano/Ninguém tem o que me falta/Nem entende o que eu digo/Avoador repentino/Sou assim/quem sabe as asas que persigo”.
Vicente nasceu em Pedreiras, a mesma cidade de João do Vale, e chegou a Brasília com 12 anos. Faz parte de uma geração que cresceu na década de 1980, sob os ventos da redemocratização e os fantasmas da ditadura. Abraçou e foi abraçado por Brasília. Depois de décadas de cerceamento imposto pelo regime de exceção instalado a partir de 1964, na década de 1980 a cidade seria efervescente, audaciosa, prazerosa, solar e feliz. Era um tempo de grandes esperanças.
Aquela geração ocupou a cidade com música, poesia, teatro, artes cênicas e artes plásticas. A plataforma de lançamento eram Os Concertos Cabeças, quando, pela primeira vez, os gramados das superquadras e, mais tarde, o Parque da Cidade, foram tomados pela arte. Vicente emergiu do movimento da poesia marginal e escreveu muitos poemas rápidos, em que a verve de humor se funde à veia lírica: “Sorria/Você está sendo/Transformado em poesia”, escreve em Câmera do poeta.
Conhecia as qualidades e os defeitos da cidade, com a qual interagiu, intensamente. Estava sempre com o radar ligado para a poesia. Arrancou poemas delicados diretamente das ruas: “O nome de meu pai é Tião/Mas eu chamo mesmo é de pai/Paizinho o meu nome é criança/E a minha brincadeira é crescer/Ser gente grande/Para poder andar por aí/A minha mãe sumiu no mundo/Um dia, de tarde/O nome dela é ausência,/Mas eu chamo mesmo é de saudade.”
O Filósofo da Asa Norte, personagem das crônicas, era uma espécie de alterego de Vicente, introduzindo o tempo da poesia na rotina vertiginosa do cotidiano: “De outra feita, me explicou que não se deve abordar as pessoas para conversar quando elas estão caminhando. Elas acham que estão perdendo tempo. ‘Como se o tempo pudesse ser de alguém e que este alguém o pudesse perder’, afirmava (o Filósofo), olhando-me nos olhos.”
Vicente pertence a uma geração que ensinou a viver e a amar Brasília. A sua despedida foi um ritual de celebração das coisas que amava: a amizade, o afeto, a música, os rituais e a poesia. E fecho com trechos do texto de Maria Maia em homenagem a Vicente: “O Filósofo da Asa Norte se foi/Deixou um vazio nos domingos quentes/Se foi e nos deixou órfãos, sofrentes/Orfãos de poemas, crônicas, romances, inocências/órfãos do bom humor e da fina ironia/da sua descarada inteligência”.