Pierrô minimalista

Publicado em Crônicas
Crédito: Carlos Vieira/CB/D.A. Press. Brasil. Francisco K, poeta e ensaísta: fé inabalável na poesia.

 

 

Severino Francisco

 

Francisco Saraiva, o Francisco K, tem uma fé na poesia capaz de abalar montanhas de ceticismo. K é pernambucano, filho de um casal de professores da UnB, mas cresceu em Brasília. Ele gosta de poesia concreta e Jimi Hendrix, Augusto de Campos e o rap, Mallarmé e Noel Rosa, Hélio Oiticica e Wilson Batista, o haikai e a tropicália, a performance e Jards Macalé, João Cabral de Melo Neto e Chico Science. E o interessante é que ele tenta misturar tudo isso em sua poesia de maneira concentrada.

 

K tem quatro filhos: Hélio (homenagem a Hélio Oiticica), Augusto (homenagem a Augusto de Campos), Ana Lívia (homenagem à personagem de Finnegans Wake, de James Joyce) e Gabriela (talvez homenagem à Gabriela, de Jorge Amado).

 

Mas engana-se quem imagina que K é um poeta cerebral e árido. No livro Hagoromo/Arestas, ele refaz em versos de quase haikais uma peça do teatro nô, traduzida por Haroldo de Campos. A trama é impregnada de uma forte carga de poesia: narra a história de um pescador que encontra, pendurado em um ramo, o hagoromo, um manto de plumas mágico de uma tenin, um anjo-ninfa ou uma dançarina celeste: “É quase/a pele/de um/anjo/o que/se vê/veste/de um/anjo/sua/quase/pele/coisa/caída/do céu”.

 

Como se vê, os versos de K têm uma intensa música interna, sempre sugerem uma dança das palavras. E o poema fecha com um belo verso sobre a transcendência divina suscitada pela visão da ninfa-anjo: “exorbita/a/vista:/avesso do/visível”.

 

O erotismo cifrado e o lirismo lunar são as marcas mais fortes do livro Eu versus, título que expressa o embate do poeta com a poesia e com o amor. Alguns versos têm um eco de pierrô alucinado de Manuel Bandeira: “de beco/em beco/grito o/seu nome/que se/dissipa/em inanes/ecos:/lua…/lua…”

 

E o erotismo parece reverberar as vestes do manto de plumas da tenin, o anjo-ninfa de hagoromo: “estalido/da lingerie lunar.” No último livro, intitulado Error, K abandona, em parte o minimalismo, e imprime uma guinada rumo ao discurso, embora de maneira fragmentária. Está dividido em três poemas: Error, Sublevação e Samba.

 

Error narra a errância de um misterioso personagem por um cenário de cidade da periferia, com cortes cinematográficos e tomadas de câmera que transfiguram cenas triviais: “vermelho em torno cegante/a cor/miragem ira fútil”. Sublevação evoca um momento de revolta política da juventude, perpassada pela figura enigmática de uma musa guerrilheira, mas sem derrapar, em nenhum momento, no panfletarismo.

 

No terceiro segmento, K transforma a paixão pelo samba de Noel Rosa, Wilson Batista, Zé Kéti, Nelson Cavaquinho e Moreira da Silva em parceria. Essa parceria mediúnica com os mortos se torna possível pela colagem de fragmentos de letras dos grandes sambistas com inserções de novos versos.

 

É o momento mais livre, pois a montagem atinge o plano do surreal, como se fosse um sampler de nonsense: “O bonde que parece uma carroça/olhou pra mim então me disse/também já não sei quem sou”.

 

O famoso verso de Zé Kéti é revirado pelo avesso: “A voz do morto sou eu mesmo sim, senhor”. A liberdade foi a grande experimentação de K em Error. A sua poesia é um claro enigma perpassado de símbolos, que pedem a releitura. Ele é meio concreto, meio pierrô, meio simbolista, meio zen. Como bem disse Murilo Mendes, a poesia sopra onde quer.

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