Perfume imprevisto

Publicado em Crônicas
Crédito: EDUSP/Reprodução. Clarice Lispector, imagem do livro Clarice: Uma vida que se conta; de Nádia Battella Gotlib.
Crédito: EDUSP/Reprodução. Clarice Lispector, imagem do livro Clarice: Uma vida que se conta; de Nádia Battella Gotlib.

Severino Francisco

Clarice Lispector era armada de radares poderosos de intuição. Em 11 de dezembro de 1970, ela conheceu a escritora Olga Borelli, de quem se tornaria amiga para sempre. O encontro está registrado na biografia Clarice – Uma vida que se conta (Edusp), de Nádia Battella Gotlib. Mas, um detalhe chama a atenção: na terceira vez em que elas se viram, Clarice convidou Olga para uma visita a seu apartamento. Lá, Olga se surpreendeu: Clarice havia escrito uma carta para propor a amizade.

 

E exigiu que fosse lida ali mesmo: “Não era uma amizade, era uma proposta de vida”, comenta Olga em depoimento para o livro: “De certas pessoas não é possível aproximar-se de uma forma superficial, há que submergir profundamente e isso nos aconteceu: me submergi em Clarice e Clarice se submergiu em mim”.

 

Na carta, a argumentação de Clarice assustaria a muitas pessoas. Ela declara a certeza fulminante de ter descoberto uma amiga. No entanto, pondera com uma franqueza de estarrecer: “ Mas você sai perdendo. Sou uma pessoa indecisa, insegura, sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade, não sei o que fazer comigo. Sou uma pessoa muito medrosa. Tenho problemas reais gravíssimos que depois lhe contarei”.

 

Crédito: EDUSP/Reprodução. Retrato de Clarice Lispector em Cabo Frio em 1972 feito por Carlos Scliar, imagem do livro Clarice: Uma vida que se conta; de Nádia Battella Gotlib.
Crédito: EDUSP/Reprodução. Retrato de Clarice Lispector em Cabo Frio em 1972 feito por Carlos Scliar, imagem do livro Clarice: Uma vida que se conta; de Nádia Battella Gotlib.

Após enumerar, minuciosamente, os próprios defeitos, sem se jactar de nenhuma qualidade, Clarice indaga: “Você me quer como amiga mesmo assim? Se quer, não me diga que não lhe avisei. Não tenho qualidades, só tenho fragilidades. Mas às vezes (…) tenho esperança. A passagem da vida para a morte me assusta: é igual como passar do ódio, que tem um objetivo e é limitado, para o amor que é ilimitado. Quando eu morrer (modo de dizer) espero que você esteja perto. Você me pareceu uma pessoa de enorme sensibilidade, mas forte”.

 

Clarice conheceu Olga em uma quinta-feira, dia 10, data do aniversário, e considerou esse o grande presente que recebeu, numa hora difícil, de grande solidão: “Acontece que eu achava que nada mais tinha jeito. Então vi um anúncio de uma água de colônia da Coty, chamada Imprevisto. O perfume é barato. Mas me serviu para me lembrar que o inesperado bom também acontece. E sempre que estou desanimada, ponho em mim o Imprevisto. Me dá sorte. Você, por exemplo, não era prevista. E eu imprevistamente aceitei a tarde de autógrafos”.

 

Clarice morreu em 9 de dezembro de 1977, numa sexta-feira. As palavras da carta se confirmaram de maneira profética. Expirou amparada por Olga Borelly. Para além das circunstâncias, a nossa vida tem um enredo íntimo, um enredo espiritual, que se cumpre inapelavelmente, de maneira tortuosa ou caprichosa. É isso mesmo, com ou sem perfume Imprevisto, o inesperado bom também pode acontecer.

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