Maria Lúcia Verdi
Especial para o Correio
Passagens podem ser muito interessantes, provocadoras, desafiadoras, lúgubres, deslumbrantes. Desde uma passagem-esconderijo da infância à uma passagem numa caverna, numa alameda, em uma rua estreitíssima, entre duas margens de um rio, àquelas passagens parisienses que estimularam Walter Benjamin.
As passagens subterrâneas para pedestres de nossa Capital foram uma ideia genial, sem passarelas proporcionam segurança aos caminhantes mantendo a limpeza visual. Porém, são pouco utilizadas devido ao descuido na manutenção. Em Brasília só tem vez e voz quem tem carro? Muito contrário à proposta democratizante de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Tanto a lamentar, e isso se acrescenta aos que defendem Brasília.
Convidei para um passeio os amigos Francisco Alvim, o Embaixador e poeta Chico, reconhecido nacionalmente, e a companheira Clara de Andrade Alvim, filha de Rodrigo de Mello Franco Andrade, criador do Iphan e ela mesma funcionária do Centro Nacional de Referência Cultural, além de brilhante professora de literatura. Nenhum deles havia atravessado alguma das passagens.
Elas são galerias espontâneas, espaços de liberdade onde artistas e passantes expressam pensamentos, emoções violentas e delicadas, desabafos políticos, desenham, nos fazem rir, refletir e muitas vezes encantam. Sabia que os amigos se animariam com muito do que pode ser visto, amantes que são das artes e observadores atentos da nossa realidade político-social. Fotos do casal Alvim durante a excursão estão postadas no blog de Severino Francisco.
Encantaram-se com as travessias, pontuadas pela explosão verde da grama, o céu escandalosamente azul e o branco brincalhão das nuvens. Porém, ficaram chocados com o estado dos espaços. Por incrível que pareça, não há lixeiras neste importante espaço urbano, fundamental para os cidadãos que andam a pé e que as atravessam de dia e com atenção. O lixo se acumula e estimula o descaso e a insegurança.
Imaginei um cenário de Primeiro Mundo, com a instalação de uma lixeira grande em cada uma das três passagens que as unem aos Eixinhos e Eixão, em todas elas, as do norte e as do sul. Será que os passantes não se animariam a ajudar na limpeza? A vida é passagem, frase banal e certeira — por que não apostar no cuidado e embelezamento dos lugares por onde transitamos, e nos quais poderíamos vir a flanar? A cidade, as cidades deveriam ser extensão da nossa casa, como eram as cidades ideais do Renascimento.
Em uma das paredes, Chico leu: “A felicidade é passageira”, e comentou: “Veja que ótimo, um outro riscou em cima da frase. Aqui se produz um diálogo! ” Ele, que se utiliza em sua poesia das frases que escuta, apreciou as manifestações. Clara aponta para outra: “Do you know who you are?” E comenta, rindo: “E um outro adicionou: ‘No’ ”. “Você sabe quem você é? Não.”
Observar o que os brasilienses dizem nessas paredes, lugar onde o inconsciente às vezes parece vir à tona, é um fato sociológico estimulante. Há pinturas que explodem em cores, alguns lobos-guarás encantadores, grafismos geométricos muito bons, espaços que só tem semelhantes na W3 Sul, notadamente na área externa do Espaço Cultural Renato Russo.
Mas por lá parecem mais “profissionais”, sendo que nas passagens que unem as quadras há algo mais raiz, que merece atenção. Que tal um movimento para que o Governo resolva transformá-los em pontos turísticos? Lixeiras e cidadania – só isto e a poesia faz o resto.
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