Os sem vacina

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Severino Francisco

Como as pessoas enfrentavam as doenças antes das vacinas? Diante da ameaça negacionista, eu me fiz essa pergunta e, de repente, lembrei que Nelson Rodrigues viveu uma experiência dramática quando ficou tuberculoso. O nosso profeta do óbvio escreveu inúmeros relatos de pungente e dilacerante humanidade sobre o episódio. Naquela época, não havia vacinação ampla para prevenir nem estreptomicina para curar.

Ele ficou três anos internado em Campos do Jordão, em uma instituição chamada Sanatorinho. Apesar do nome delicado, Nelson afirma que todas as suas evocações em Campos do Jordão poderiam levar o título de Recordações da Casa dos Mortos, alusão ao clássico de Dostoéivski sobre o período em permaneceu preso na Sibéria.

Nelson ficou doente em 1934, quando trabalhava em O Globo, jornal dirigido por Roberto Marinho. Tinha 22 anos e vivia na penúria, repassava todos os 500 mil réis que ganhava para a mãe, pois a família era grande e estava desamparada depois da morte do patriarca Mario Rodrigues. O doutor Isaac Brown, amigo de Nelson, conseguiu uma vaga gratuita no Sanatorinho, na seção de “indigentes”.

Mas havia, ainda, um empecilho: a família de Nelson dependia do dinheiro que ele ganhava. Mario Filho, irmão mais velho, foi pedir a Roberto Marinho que continuasse a pagar o salário de Nelson: “Claro, o que interessa é que o Nelson fique bom”, respondeu o diretor.

Na viagem de trem rumo a Campos do Jordão, o nosso profeta do óbvio sentiu remorso e vergonha. Lembrou-se que costumava se refugiar no arquivo do jornal e desancar o diretor, chamando-o de “analfabeto”, “besta” e “cretino”, entre outras amenidades.

Por quê Nelson ficou doente? Ele dizia que tudo poderia ser resumido na palavra fome. No caso, fome queria dizer penúria, excesso de trabalho, falta de roupas decentes e de dinheiro para comprar comida: “Quantas vezes, almocei uma média e não jantei nada. Tudo isso era a minha fome e tudo isto foi a minha tuberculose”.

Os jornais da época chamavam a tuberculose com o nome diáfano de “peste branca”. Na redação mesmo, Nelson havia assistido colegas que estavam batendo uma matéria e, de repente, corriam para o banheiro e soltavam golfadas de sangue. A tuberculose era uma doença tão temida e tão mortal que, ao saber que estavam contaminadas, algumas pessoas tomavam formicida para abreviar o sofrimento.

A noite no Sanatorinho era marcada por uma sinfonia de tosses. Raras eram as visitas de familiares. Mas, depois de três anos, Nelson se recuperou e retomou a vida de jornalista no Rio de Janeiro. Durante todo esse tempo, Roberto Marinho pagou o salário de Nelson. Esse era o mundo sem vacina que algumas excelências defendem agora.

É possível imaginar o que Nelson diria dos negacionistas de hoje pelo depoimento que deixou sobre a campanha contra a vacina durante a epidemia da febre espanhola. Ele só tinha 6 anos de idade, mas leu nas velhas coleções da Biblioteca Nacional o que acontecera na época e comentou: “E, de fato toda a cidade se levantara a favor da peste contra a vacina; a favor das ratazanas contra Oswaldo Cruz; a favor da varíola contra a saúde”.

Nelson também sentenciou com a clarividência de profeta do óbvio: “A burrice é a forma mais perigosa de loucura”.

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