Os quixotes do Iphan

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Severino Francisco

Sempre me senti humilhado e, ao mesmo tempo, (saudavelmente) provocado pela inteligência e pelo talento de uma constelação de pessoas brilhantes do nosso modernismo. É o momento mais alto da inteligência brasileira.

Por isso, me despertou a atenção o livro Mário de Andrade Rodrigo M.F. de Andrade – Correspondência anotada, organizado por Maria de Andrade, dois grandes intelectuais do modernismo, com notas de Clara de Andrade Alvim. É a correspondência entre os dois quixotes criadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que se desdobraria no atual Iphan.

Todavia, Rodrigo é um quixote de Minas, idealista, mas pragmático. Manuel Bandeira, seu melhor amigo, o descreveu assim: “Como melhor precisar/Esta palavra Amizade?/Nomeando o amigo exemplar:/Rodrigo M.F. de Andrade”.

Confesso que, a certa altura, cogitei fazer uma leitura seletiva, omitindo detalhes que me pareceram demasiado prosaicos, tais como as prestações de contas de Mario de Andrade a Rodrigo. No entanto, logo percebi que, se fizesse isso, perderia lances relevantes do movimento dramático da história, permeado de fatos triviais.

É interessante como o quixotismo dos dois amigos bate de frente com a irracionalidade e a lentidão da burocracia. Mário criou o projeto do Sphan, mas, para se adequar ao cargo disponível, ele foi contratado na condição de auxiliar técnico. Em determinado momento, Rodrigo se vê na contingência surreal de demitir Mário, porque ele optou por manter-se no cargo na Secretaria de Cultura de São Paulo, depois que uma lei impediu a dupla função no serviço público.

Mas como era demorado contratar outro funcionário, Mario aceitou continuar trabalhando sem remuneração. “Continuarei exercendo o meu cargo de Assistente Técnico, sem remuneração de espécie alguma, enquanto não nomeardes meu substituto, bem como, dada a nomeação próxima deste, continuarei da mesma forma os trabalhos já por mim iniciados, enviando-os assim que terminem”.

Durante as pesquisas, Mário de Andrade ficou fascinado pela obra do padre Jesuíno do Monte Carmelo no teto da igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Itu, São Paulo. De maneira semelhante a que ocorreu com o Aleijadinho em Minas, o mulato Jesuíno se desforra por ser barrado pela nobreza de sangue e de dinheiro, que dominavam a Capitania. “Jesuíno se vinga disso e disfarçadamente entre quase cinco dezenas de anjos que pintou no céu carmelitano de Itu, intromete um mulatinho, como protesto contra a lei tácita que o proibia de entrar na ordem da sua Senhora preferida.”

Na década de 1980, o sociólogo Sérgio Micelli criticou a suposta cooptação dos intelectuais que participaram da política de cultura nacionalista do Estado Novo, durante o governo de Getúlio Vargas, liderada pelo ministro Gustavo Capanema. No entanto, a correspondência de Mário e Rodrigo mostra que o processo foi dramático, tenso, eivado de contradições e produtivo. Não eram vassalos do estado de exceção. De fato, é muito mais fácil ser virtuoso em um convento beneditino do que em uma ditadura.

A correspondência entre Mário e Rodrigo revela a gênese, os desafios, a precariedade, os entraves e a determinação dos dois amigos para criar o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. As notas de Clara Alvim, filha de Rodrigo, são complementos imprescindíveis da leitura das cartas para contextualizar, nos transportar aos bastidores e para iluminar personagens que se esfumaram no tempo.

É uma teia de amizade e idealismo. Sem a tenacidade, a determinação e a sagacidade desses dois quixotes, não teríamos essa instituição fundamental para a preservação do patrimônio cultural brasileiro. Que o Iphan honre o legado de inteligência, de resistência, de cultura, de luta e de amor ao Brasil deixado por Mário e Rodrigo.

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