Severino Francisco
Eu já vivi muitas epifanias com os ipês na cidade. Assisti a uma inesquecível e quase surreal chuva de pétalas amarelas de uma árvore frondosa no condomínio onde moro. Na passagem de carro, nesta época do ano, bastava dar uma mirada pela janela para contemplar a visão do esplendor na QL 14 do Lago Sul. Houve uma época em que a única notícia boa que se tinha era a floração dos ipês na Esplanada dos Ministérios.
Os ipês amarelos costumam florescer de julho a setembro, mas, neste ano, está estranha a situação. Tenho como referências a QL 14 do Lago Sul e a 402 Norte, que ostentam verdadeiras alamedas da espécie. Na QL 14, eles apareceram, mas sem o viço de anos anteriores e, parece, entraram em declínio. Enquanto isso, na 402 Norte, até agora, somente uma árvore apresentou floração.
É uma das experiências mais intensas de êxtase estético dos que habitam o nosso território. O realce é ainda maior porque, em pleno estio, os ipês esplendem com todo fulgor. A moldura da seca destaca o encanto das flores que desafiam a aridez. É preciso armar-se de câmeras de celular, rapidamente, para registrar o flagrante, pois a beleza deles é extremamente fugaz. A floração só dura de 10 a 15 dias.
Pois bem, com essas evocações vivas na memória, circulei por alguns pontos para apreciar a floração dos ipês e me surpreendi com a visão. O ipê-roxo esplendeu com vigor em muitos pontos da cidade. No entanto, o mesmo não aconteceu ou está acontecendo com o ipê-amarelo.
E a mutação não ocorreu somente no tempo, mas, também, no ritmo e na maneira das inflorescências. Em vários lugares, eles floriram tímidos, foram embora e deixaram apenas os galhos esturricados.
Percebi o mesmo fenômeno de ensaio da floração e ressequimento na maioria dos ipês amarelos. Em contrapartida, alguns ipês brancos estão em pleno fulgor. O que estaria acontecendo? Eu queria ouvir a voz dos cientistas e encontrei uma matéria no Estadão, de 2022, na qual eles tecem comentários sobre o que eu desconfiava que pudesse acontecer: os impactos do aquecimento global e das mudanças climáticas sobre a floração das árvores.
“Se as chuvas forem ficando cada vez mais curtas, ocorrendo só entre dezembro e janeiro, por exemplo, a floração pode adiantar, porque a seca vai começar muito cedo”, aponta a professora Rosane Collevatti, da Universidade Federal de Goiás. “Ou mesmo não ter floração, porque a planta pode não ter tempo de se recuperar energeticamente.”
E mais: é nas estações com abundância de água que a árvore realiza a fotossíntese máxima e, desta maneira, consegue acumular carbono para florir, salienta a pesquisadora: “Se for um período muito curto, vamos começar a ter períodos muito pequenos ou quase não vai ter floração. A floração vai ficando cada vez mais breve e cada vez menor.”
Eu tinha a impressão de que a estação dos ipês seria diferente neste ano. Vamos esperar, mas, por enquanto, há sinais de que o ciclo dos ipês foi bastante alterado pelos efeitos do aquecimento global. Vi uma entrevista de um dirigente do governo, afirmando que houve atraso, mas não é preciso se preocupar.
Permitam-me discrepar. Sim, é preciso se preocupar porque é sinal de consequências mais graves que virão. Isso deveria, inclusive, ser contemplado, com prioridade, no plano de preservação da cidade porque os efeitos do aquecimento global já são realidade. Basta ver o que aconteceu com as enchentes no Rio Grande do Sul. Não é uma questão de esquerda ou direita; é uma questão da nossa sobrevivência. É uma trágica ironia que pessoas que amam os ipês votem em candidatos negacionistas das mudanças climáticas.
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