Severino Francisco
No ano passado, comprei um carro e uma das exigências era que ele tivesse aparelho para tocar CD. Reconheço as inovações da tecnologia, mas gosto da materialidade do CD e do livro físico. Eu acho muito bom ouvir música no carro que, em Brasília, sempre tem o seu momento de espaçonave, segundo o poeta Francisco Alvim.
Na semana passada, fiquei com vontade de escutar uma antologia de Elba Ramalho. Fui a uma discoteca, mas não encontrei. Então, levei um mais recente. Logo de cara, gostei muito da faixa que abre o disco, Olhando o coração, que empurra a gente com o som da sanfona.
Era um forró clássico, mas com uma poesia mais requintada, que me chamou a atenção: “O meu andar pelo mundo/É um andar bem profundo/vai onde tem um forró/uma alegria uma dança/meu coração não se cansa/de uma festa encontrar”.
Elba Ramalho, a um só tempo, moderniza e imprime uma marca ancestral nordestina em suas interpretações. Mas eis que ao folhear o encarte me deparo com a surpresa: o autor da linda canção é brasiliense, é Climério Ferreira em parceria com Dominguinhos. O interessante na letra de Climério é que o forró é apresentado quase como uma utopia de felicidade e como um destino brasileiro ou nordestino.
Ele é um poeta que tira de letra. E, na voz de Elba, as suas palavras ganham sopro, relevo e dramaticidade: “Mas por enquanto nem tento/apreciar as estrelas/olhar pro céu é vê-las/piscarem luzes no chão/eu cá por mim me contento/e sem querer ofendê-las/Em vez de olhar estrelas/olho pro meu coração”.
Os irmãos piauienses Clodo, Climério e Clésio sempre me pareceram índios yanomamis. Clésio já nos deixou, mas legou também lindas canções. Eles não são de briga; são de festa. Não é por acaso que quando se encontraram com Nara Leão se tornaram grandes amigos. A ponto de Nara ter composto a única canção em homenagem aos amigos piauienses.
Climério chegou a Brasília em 1962, aos 18 anos, para morar na Cidade Livre, futuro Núcleo Bandeirante, na 4a Avenida, uma espécie de cidade cenográfica de filmes de faroeste, erguida a toque de caixa para abrigar o comércio, os hotéis e outros serviços. Veio com uma carga muito forte de cultura nordestina. Em Teresina, assistiu a autos populares, festas de são-joão, forrós, shows de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga.
Levou um susto ao ver Gonzagão metido numa roupa encourada de cangaceiro misturada com vaqueiro, em um show promovido pelo Colírio Moura Brasil. Ficou maravilhado com a indumentária, a sanfona, a performance teatral e o sotaque. Pela idade e pela vivência, tinha tudo para ser roqueiro, acompanhava o movimento, ouvia os discos, mas o rock não pegou em sua pele como ocorreu com a maioria das pessoas de sua geração.
A sanfona lhe diz muita coisa, o rock não. Ele não se jacta de nada, considera até um defeito não ter sido contaminado pela energia do rock. Em Brasília, reencontrou um pedaço desgarrado do nordeste e um espaço para ser piauiense/brasiliense. Tornou-se professor da Universidade de Brasília, fez doutorado no Canadá, mas não perde o despojamento de índio piauiense.
Olhando o coração é uma das 60 músicas que os irmãos piauienses compuseram com Dominguinhos, a quem conheceram em Brasília, em 1979. É um hino ao forró e aos poderes de imantação da música: “O meu andar pela vida/é sem controle errante/é como um sonho de amante/que acredita no amor/e nessa trilha perdida/no rumo desconhecido/o meu andar atrevido/cura a ferida e a dor”.
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