Severino Francisco
Galeno é o nosso curumim arteiro. Ele é um legítimo filhote do modernismo brasiliano. Com figuras e materiais precários (carrinhos de lata de sardinha da infância, carretéis, bilros da mãe bordadeira, canoas construídas pelo avô, móveis do pai marceneiro), ele faz uma festa brasileira para os olhos, recriada sob lentes construtivistas. A sua arte é de extremo requinte e elegância. Tem algo do traço, da fantasia, do ritmo e da signagem de Volpi, de Athos Bulcão e de Rubem Valentim, mas é, cada vez mais, puro Galeno.
Em vez de jogar a experiência pessoal debaixo do tapete e copiar a última moda de Paris ou Nova York, escavou, de maneira (quase sempre) autodidata, com muito trabalho, um caminho singular. Percebeu que, para encontrar uma linguagem própria, precisava voltar às coisas simples de menino inebriado pelas formas e cores do Delta do Parnaíba piauiense.
Nasceu em Parnaíba, no Piauí, e se mudou para Brasília em 1965, aos oito anos. Sentia uma sensação de pesadelo com os prédios do Plano Piloto, que pareciam próximos, mas ficavam distantes quando caminhava para chegar até eles. Na inocência de moleque do interior, pensava que isso era o tal moderno de que se falava tanto.
Com a inquietação de curumim arteiro, paulatinamente, assimilou o espírito da cidade ao vivenciar a arquitetura de Niemeyer, os painéis de Athos Bulcão, as banderinhas de Volpi e a pintura de Rubem Valentim, inspirada nos signos do candomblé e da cultura afro-brasileira. Aprendeu a valorizar a sua vida de menino nordestino e a olhar para os objetos, as brincadeiras e as festas sob um prisma modernista.
Galeno cria, todos os anos, um troféu original para o Prêmio Saruê, concedido pelo Correio Braziliense ao melhor momento do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Neste ano, ele concebeu uma estatueta que parece um estilingue ou baladeira de cabeça para baixo. Representa os seus ancestrais, os homens mais antigos das Américas.
Compôs um candango com o cabo da baladeira de madeira angelim e bilro de rendeiras. Parece as inscrições rupestres da Serra da Capivara, no interior do Piauí. “Perdi o disco voador das onze”, brinca Galeno. Na estatueta, quis mostrar a ligação com a memoria afetiva. A arte que ele faz não vem só dos livros ou dos museus. Sempre está conectado à vivência e às memórias de menino do Delta do Paranaíba piauiense.
Na primeira mirada, o troféu lembra o estilingue. Só que, para Galeno colocar essa baladeira de cabeça para baixo, ele precisou de 55 anos. Por meio dessa linguagem, fala da mãe, artesã de bilros, do pai, do avó, do bisavô e do tataravô, construtores de barcos. O troféu pode chocar pela simplicidade e economia de meios. Mas a simplicidade vem naturalmente para Galeno.
Todos os meninos de sua infância tinham baladeira, pião e papagaio. Aprendiam a
mexer com o barro para fazer a munição para os estilingues. Galeno busca cada vez mais o despojamento, a essencialidade e a simplicidade. Alguns dizem: “mas isso eu também faço”.
Se querem depreciar, o tiro sai pela culatra, pois trata-se de um elogio, porque apesar de assimilar conceitos experimentais, a arte de Galeno nasce da simplicidade extrema da sua ancestralidade de artesãos populares. O troféu Saruê dessa edição do festival parece uma inscrição rupestre arrancada da pedra bruta, arrancada da pedra lascada.
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