Severino Francisco
O projeto Cabeças ensinou Brasília a fazer uma ocupação lúdica da cidade. Inspirou a transformação do Eixão da Morte em Eixão do Lazer nos fins de semana e feriados. Na década de 1980, o ator e produtor Neio Lúcio colocou nos gramados das superquadras da cidade um projeto que implodiria com vários lugares comuns estigmatizadores de Brasília: cidade fria, cidade-fantasma, moradores alienados ou ausência de interação dos moradores com a superquadra. O Cabeças promoveu shows musicais que mobilizaram a juventude para assistir espetáculos ao ar livre, sentada nos amplos gramados.
Quem era sub-18 estava lá. Foi fundamental para a afirmação da cultura brasiliense. Lucio Costa, o autor do plano urbanístico da nova capital ficou encantado, pois o projeto comprovava as ideias comunitárias que acalentou no Plano Piloto de Brasília. Escreveu em letra desenhada: “Enquanto os maiorais, confinados nas suas monumentais redomas, brincam de administração e política, – ao ar livre das quadras das áreas de vizinhança estes bons samaritanos ensinam os usuários a vivê-la”.
Há mais de 10 anos, Neio sofreu um infarto. Imediatamente, pegou o carro e saiu voado até a casa de um grande amigo no mesmo condomínio onde mora, Everett Lee, americano que foi personagem da crônica por diversas vezes. Lee se caracterizava por desfiar os mais cabeludos vocábulos da língua portuguesa com um sotaque inconfundível de americano.
Ao ver o amigo reclamando de dor aguda no peito, Lee fulminou desesperado: “PQP, meu amigo! Você não pode morrer, tome uma Coca-Coca!”. Neio destravou toda a tensão e soltou uma gargalhada salvadora. Com o riso, relaxou e pôde chegar até o hospital a tempo de receber cuidados médicos.
Salvou-se, mas sobreviveu com restrições de saúde. Teve dificuldade de respiração e mobilidade que o atormentaram durante muito tempo. No entanto, eis que um dia Neio descobriu, por acaso, o patinete elétrico e passou a usá-lo para mover-se por todos os lugares da cidade. A iniciativa representou um verdadeiro renascimento pessoal.
No início, teve contratempos quando circulava pelos shoppings. Os guardas corriam atrás e o interpelavam: “Meu senhor, não pode brincar de patinete no shopping!”. Neio respondia: “Amigo, será que você acha que, com a minha idade, eu teria a coragem de montar em um patinete para desfilar? Evidentemente, tenho um problema de saúde”. E o guarda: “Ah, então, o senhor me desculpe”.
Centros médicos que tratam de problemas de mobilidade estão adotando o equipamento. Para Neio, foi a independência. Ele recuperou a saúde, a existência social e o brilho nos olhos. Vai ao supermercado, ao comércio e aos eventos culturais, sem precisar de ajuda. Ganhou a simpatia e o respeito dos guardas de shopping, que comentaram: “Vou pedir ao pessoal do shopping que compre um patinete igual ao seu”.
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