O Rei do Baião

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Severino Francisco

Nesta época do ano, quando o frio começa a pegar, as noites brasilianas quase que clamam por uma festa de são-joão. E, festa de são-joão, para mim, é música de Luiz Gonzaga. Se tivesse inventado só as canções juninas, já seria considerado um gênio da música popular em qualquer país do mundo. Mas ele ainda criou o xote e o baião.

Quando escrevi o livro Da poeira à eletricidade – uma história da música em Brasília, soube que Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro se apresentaram em cima dos caminhões para os operários nos tempos da construção da cidade. Fiquei com inveja de quem assistiu.

Todavia, no fim da década de 1970, tive o privilégio de assistir a um memorável espetáculo de Gonzagão, durante o lançamento de um conjunto residencial no Gama, em condições bastante semelhantes aos shows da alvorada brasiliense.

Tentei marcar a entrevista, mas a produção avisou que só seria possível se eu fosse na Kombi e conversasse com Gonzagão durante o trajeto. E lá fomos nós, como se viajássemos rumo aos tempos épicos de Brasília, quando ele subia nas caçambas dos caminhões.

Gonzagão sentiu-se escanteado pela Jovem Guarda, na virada dos anos 1960, e cantava o Xote dos cabeludos, que era muito engraçado: “Cabra que usa pulseira/No pescoço o medalhão/Cabra com esse jeitim/No sertão de meu Padim/Cabeludo tem vez não”.

Chegamos ao loteamento, que ficava em um descampado, batido por um vento sibilante, levantando poeira e formando redemoinhos que varriam o chão de terra vermelha. Duvidei de que houvesse show naquelas condições tão adversas. No entanto, Gonzagão refutou com firmeza e bom humor: “Claro que vai ter show. Eu sou lá de Novo Exú, que fica onde o vento encosta o cisco”.

O que vi quando Gonzagão subiu ao palco foi uma performance impressionante. Ele era um teatro completo e dominava inteiramente o público com a autoridade de rei da música nordestina. Provocou gargalhadas quando cantou Respeita Januário e contou que, ao voltar para casa depois de 20 anos, em razão de uma desavença de família, bateu na porta de madrugada e anunciou: “É Luiz, seu filho”. Ao que, o velho Januário respondeu fulminante: “Isso é hora de voltar para casa, seu corno”.

Fiquei também espantado com a homenagem pungente e espirituosa que prestou ao jumento, animal desprezado e tão essencial aos nordestinos desvalidos do sertão. É preciso ser um cabra muito macho para cantar: “O jumento é o maior desenvolvimentista do sertão/O jumento é nosso irmão”. É algo de uma grandeza digna de um São Francisco de Assis.

Caetano Veloso escandalizou o país ao declarar que Luiz Gonzaga era o maior gênio da música popular brasileira. No livro Verdade tropical, Caetano se jactava de ter sido o primeiro a colocar Coca-Cola em uma canção popular (“Eu tomo uma Coca-Cola/Ela pensa em casamento.”)

No entanto, um fã de Caetano o advertiu de que Luiz Gonzaga já havia metido a Coca-Cola na canção Dois siris jogando bola, muito antes do baiano: “Vi um elefante/cozinhar na caçarola/Almoçar todo frajola/E a dentuça palitar/Vi um jumento beber 20 Coca-Cola/Ficar cheio que nem bola/E dar um arroto de lascar”.

Meu pai adorava Luiz Gonzaga e, quando o Rei do Baião morreu, ele fez uma homenagem, numa paródia comovente da Canção do vaqueiro: “O Nordeste brasileiro suspirou de emoção/Quando vagou a notícia/Morreu o Rei do Baião/Nunca mais tua voz ouvirão/Meu irmão”.

Severino

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